Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrada

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Uso de cavalo em peça causa protestos

Manifestantes tomam o palco do espetáculo 'Eu Não Sou Bonita', da espanhola Angélica Liddell, em São Paulo

Obra é uma crítica à sociedade patriarcal; plateia do festival de teatro impediu o discurso dos ativistas

BARBARA GANCIA COLUNISTA DA FOLHA

"Cacilda!", exclamei ao entrar na plateia do teatro Cacilda Becker, na noite de anteontem, para assistir ao espetáculo "Eu Não Sou Bonita", com direção e atuação da espanhola Angélica Liddell.

Não, infelizmente meu clamor não estava vinculado à admiração pela gloriosa atriz que batiza a casa.

Fato está que dei de cara com um cavalo branco que, de tão grande, mais parecia um boi zebu. Minto, um alce.

O pobre animal estava entocado num canto do palco atrás de um monte de feno, cena assaz perturbadora. Mais deslocado do que o Jean Wyllys em Marcha pela Família com Deus pela Liberdade.

Enquanto a protagonista não chegava ao palco para nos brindar com sua crítica à brutalidade da sociedade patriarcal, relembrando abuso vivido na infância, eu viajei perdida em conjecturas.

"Eesse animal é mesmo necessário em cena?", pensei. Lembrei de "Equus", de Peter Shaffer, em 1975. Minha mãe me levou para assistir na Broadway, estrelada por Anthony Perkins. Que show!

A maneira como eles resolveram a presença de cavalos em cena matou. Eficiente, sintética, máscaras, tamancões, bailarinos e pronto.

E "O Rei Leão"? Alguém precisou levar um zoológico ao palco? Não o fazem porque ofenderia a Sociedade Protetora dos Animais?

Uma imponente Angélica Liddell entrou em cena jorrando versos em choro. "Cansei de ser mulher, de ter vergonha; ensinaram-me a detestar meu corpo... Homens, ignorantes e asquerosos..."

A atriz é performática, bem anos 1980. Vai abrindo uma cerveja e outra e afogando as mágoas do tamanho do equino. Você começa a entender que ela sofreu alguma barbaridade da grossa.

Só quem não se comove é o cavalo, que não para de mastigar alfafa e parece se incomodar a cada vez que ela quebra um objeto ou grita.

De repente, um punhado de ativistas está sobre o palco exibindo cartazes. "Tirem o animal!"; "Animal não é propriedade!"; "Sejamos artistas, não algozes".

No mínimo, é interessante ver a interferência de jovens expressando os direitos de quem não tem voz ativa, não? Ali não houve nem sombra da violência usada na invasão daquele laboratório de pesquisa dos beagles.

Só que o público não viu graça. Devo ter tido a má sorte de cair com a plateia mais intolerante do mundo, a mais sem graça. Vai ver, sobrei com a turma que considera "arte" uma coisa que deve ser levada muito, muito a sério.

A garotada pediu para dizer umas palavras e avisou que iria embora logo. Que o quê? Homens adultos, mulheres refinadas, supostos apreciadores de cultura levantaram enfurecidos e, amparados na unanimidade de respeitadores da ordem, partiram para um bullying violento e despudorado para cima dos manifestantes.

A porta-voz tentou falar, mas foi abafada pela gritaria. Lembrou-me da cena deprimente que presenciei no ano passado, ao mediar um debate da blogueira cubana Yoani Sánchez e trogloditas a impediram de falar. Intransigência no lugar de diálogo. Minha razão se sobrepõe à sua. Em nome do quê?

Finalmente, depois de serem xingadas, humilhadas e tratadas por loucas, as moças puderam falar. Uma das manifestantes desceu do palco e sentou-se, tremendo, na cadeira ao meu lado. "Como a senhora se chama?", perguntou. Respondi. Ela havia me visto filmando.

"Sou estudante de veterinária, posso lhe garantir que o cavalo não deveria estar ali, a senhora entende, sabe o que é um ser senciente?"

Sei sim, é um ser capaz de sentimentos como dor e agonia e emoções próximas ao pensamento. Mais do que muitos ali parecem dominar. Inclusive a protagonista.

Sim, porque para quem se pretende atriz e deseja denunciar injustiça e preconceito, o ato de jogar seus irmãos de armas aos leões mostrou a medida de sua sinceridade.

No ano que vem, já sabemos para quem não dar nosso suado dinheiro público. Lamentável espetáculo.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página