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Contardo Calligaris

Eutanásia para menores?

Como é que nossas crianças poderiam ser infelizes e desejar a morte, se nós existimos e as amamos?

Um mês atrás, o Parlamento da Bélgica aprovou uma lei que torna possível a prática da eutanásia de menores. Faz um mês que leio e penso sobre o tema --e sinto que devo um comentário aos leitores e a mim mesmo. Mas não é simples.

Antes de examinar a nova lei, voltemos no tempo. Desde 2002, três países europeus (que são próximos geográfica e culturalmente), Bélgica, Holanda e Luxemburgo, admitem a eutanásia não só (como outros países) em caso de doença física incurável, terminal, acompanhada por uma dor que não possa ser aplacada, mas também em caso de sofrimento e dor psíquicos insuportáveis.

Mesmo os que concordam, em tese, com essa possibilidade, emitem reservas. Há os que acham que dores psíquicas sejam sempre menores do que dores físicas: não faço parte desse lote.

E há os que acham que dores psíquicas nunca sejam propriamente incuráveis ou inelutáveis. Alguns pedem um esforço, como se o sofrimento fosse uma espécie de má vontade de quem sofre. Outros sentem uma espécie de culpa, como se o sofrimento psíquico do outro assinalasse que nosso amor ou nossa amizade não tiveram o poder de fazê-lo um pouco mais feliz.

De qualquer forma, na Bélgica, em 2012, dos 1.430 casos oficiais de eutanásia, só pouco mais de 3% foram por sofrimento psíquico.

No ano passado, dois casos foram amplamente discutidos pela opinião pública do país.

Em janeiro, foram eutanasiados dois irmãos gêmeos, de 45 anos. Surdos de nascença, eles viveram toda a vida juntos. Dois anos atrás, eles souberam que, por uma forma genética de glaucoma, ambos logo seriam cegos. O irmão maior e os pais resistiram quanto puderam, mas os gêmeos pediram e conseguiram o direito à eutanásia. Mesmo assim, levaram dois anos para encontrar uma clínica que aceitasse cumprir a ordem do tribunal.

Em setembro, foi eutanasiado Nathan Verhelst, 44, transgênero, nascido menina, com o nome de Nancy. Apesar de uma transformação física que (à vista das fotografias) parecia bem-sucedida, Nathan declarou, na véspera de sua eutanásia, que ele nunca tinha conseguido ultrapassar o sofrimento de quem pode perceber que "nasceu errado".

Digamos que tanto Nathan quanto os gêmeos nunca se sentiram suficientemente acolhidos no mundo. E decidiram sair.

Alguém perguntará: por esse tipo de dor psíquica, instituir a eutanásia não seria a mesma coisa do que facilitar o suicídio? Será que o Estado deveria ajudar os suicidas nos gestos radicais e finais, para os quais lhes faltasse coragem?

Uma eutanásia por razões psíquicas não é apenas um suicídio facilitado. Quem pede a eutanásia está procurando, além da morte, o reconhecimento público, oficial, de que seu sofrimento é intolerável. É legítimo e justo querer que o mundo reconheça que existo, ou seja, reconheça meu destino e meu desejo --por exemplo, que ele reconheça que não sou viável.

Benefício secundário: se for decretada oficialmente a impossibilidade de alguém viver, talvez seus próximos sofram menos com o lamento e a culpa de não terem sido capazes de justificar a vida de quem decidiu pôr fim a seus dias.

O suicídio de um pai ou de uma mãe deixa em qualquer filho uma sensação permanente de desvalor, por ele não ter sido a razão suficiente para os pais viverem. O reconhecimento público da eutanásia aliviaria um pouco essa sensação (sem milagres, claro).

Mas voltemos à eutanásia de menores (inclusive crianças de menos de 12 anos). Ela será possível só em caso de doença física incurável e terminal, acompanhada de sofrimento físico que não possa ser acalmado. O pedido deverá ser feito pelo próprio menor e ser aprovado pelos responsáveis legais (os pais, por exemplo) e pelo médico que trata o menor; um psicólogo avaliará a maturidade do paciente.

Os casos de eutanásia de crianças e menores serão muito raros. Mas o que importa é a novidade do princípio: o Parlamento belga reconheceu que uma criança pode recusar um sofrimento indissociável de sua sobrevivência e, portanto, pode querer morrer.

Talvez essa decisão seja lembrada, no futuro, como o começo do fim de nosso jeito louco e narcisista de amar as crianças --ou seja, daquele amor que diz: como é que nossas crianças poderiam ser infelizes (pior, desejar a morte), se nós existimos e as amamos?

Os legisladores belgas souberam colocar as crianças antes das necessidades narcisistas dos adultos --reconheceram que uma criança não é obrigada a querer viver só para que a gente se sinta bem. Agora, haja coração para segui-los"...


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