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Crítica - Contos
Exemplo de apuro, 'Boca do Inferno' é insulto à bondade
Otto Lara Resende mostra domínio da linguagem em marco da literatura
O NARRADOR ONISCIENTE QUE MANIPULA OS CORDÕES DAS SETE NARRATIVAS NÃO USA AS PERSONAGENS COMO FANTOCHES
RODRIGO GURGEL ESPECIAL PARA A FOLHAPassado mais de meio século da publicação de "Boca do Inferno", de Otto Lara Resende, essa coletânea pode ser considerada um marco da nossa literatura breve, exemplo de apuro estilístico.
O narrador onisciente que manipula os cordões das sete narrativas não usa as personagens como fantoches.
Mesmo quando afirma que um protagonista não tem a intenção de agir desta ou daquela forma, logo a seguir compõe delicada esfumatura, isto é, harmoniza as regiões de sombra, e o faz introduzindo um "talvez", um "por acaso" --vejam o conto "O Porão", por exemplo--, sem desprezar, contudo, a demonstração clara da fúria e do prazer provocados pelo gesto assassino.
Em "Filho de Padre", o personagem também mata com naturalidade, prolonga o gesto de derramar veneno na xícara de chá, depois de o narrador ter informado: "Como se a decisão já tivesse nascido há muito dentro dele".
A fleuma dessas atitudes --que, em "Dois Irmãos", permite a automutilação de Gílson-- concede perturbadora banalidade à vitória do mal.
LINGUAGEM
Hábil, o narrador constrói a exasperação de Floriano, em "O Porão", usando verbos de movimento que dão vida a decisões abruptas --e também ao antropomorfizar as coisas: os objetos "desafiam" Floriano; "as árvores, o beiral do telhado, tudo que estava de pé resistia com sofrimento [...]".
Esse domínio da linguagem permite compor a paixão febril de Doquinha ou a mãe reservada, cuja incompreensão chega a assumir características físicas: "[...] abriu-se a porta da sala, a mãe apareceu, alta, estranha e fria como uma viúva que se vê passar pela primeira vez na rua" (em "Namorado Morto").
ALGOZ
Toda a violência que Chico sofrerá, na história "O Moinho", se anuncia na descrição do seu algoz, o padrinho "enorme", de "costas caladas, hostis como uma parede".
E quando, mais tarde, o garoto tenta fugir dos maus-tratos, novamente a natureza ganha humanidade: "o sol, meio mortiço, ainda tonsurava o cocuruto dos morros".
Mas esse lirismo algo irônico não deve enganar o leitor. Para Otto Lara Resende, o mal é uma força concreta, absoluta, claustrofóbica.
"Boca do Inferno" é um insulto à bondade, um hino ao que pode haver de mais abjeto na natureza humana, como se a perversidade fosse o único caminho possível à literatura.