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Mônica Bergamo

UMA NOTA SÓ

O vazio deixado pelo músico e ator gaúcho Nico Nicolaiewsky, que por 30 anos lotou teatros de todo o Brasil ao lado de Hique Gomez, seu parceiro em "Tangos & Tragédias"

"Se não der pra continuar, tudo bem, fui feliz nessa vida, fiz um monte de coisa."

Essas foram as últimas palavras do músico e ator gaúcho Nico Nicolaiewsky. Ele morreu em fevereiro, de leucemia. Deixou a mulher, Márcia do Canto, a filha, Nina, 20 -e Hique Gomez, com quem dividia o espetáculo "Tangos & Tragédias" desde 1984. Contracenando num reino imaginário, o da "Sbornia", os dois continuavam lotando teatros em todo o Brasil (foram vistos por mais de 1 milhão). E, apesar de praticamente repetirem o show por exatos 30 anos, faziam o público chorar de tanto rir.

A morte de Nico causou comoção -em especial no Rio Grande do Sul, onde a dupla subia ao palco todos os verões para mais uma série de apresentações do "Tangos". Foram 28 temporadas.

Ele estava em cartaz quando recebeu a notícia de que tinha leucemia mieloide aguda, um tipo mais agressivo da doença. Morreu em 17 dias.

Mesmo diante da tragédia, Nico tentava não perder a piada, segundo Márcia, que é atriz e se casou com ele em 1987. Seu médico se chamava doutor Flavo, sem o "i". "Outro dia encontrei uma Celsa", brincava Nico na consulta.

"Tivemos uma despedida muito legal", diz Márcia, que recebeu o repórter Morris Kachani no apartamento da família, no arborizado bairro do Bom Fim, em Porto Alegre. "Carinhosamente, ele falou para nós [ela e a filha] não brigarmos, antes de ser entubado e sedado."

A atriz se emociona: "Sei lá o que importa". A filha, Nina, faz a única intervenção ao longo de toda a conversa: "O que importa é que foi bom".

Bom desde o começo, no caso também de "Tangos & Tragédias". Servindo um chimarrão no estúdio em sua casa, no morro do Osso, com vista para o rio Guaíba, Hique conta que "a química foi imediata" quando conheceu Nico. Eram muito diferentes, às vezes até conflituosos.

"Muitas vezes tínhamos pontos de vista diferentes", revela o músico. "Mas a energia se misturava, que nem no violino, na base do atrito. Sempre fazíamos essa analogia, do arco na corda, da palheta no acordeom. Nosso conflito era o nosso ouro. O conflito não é o mal, como se pensa. O mal é a ignorância."

Nico já tinha ganhado notoriedade à frente do musical Saracura, nos anos 1980. Conduziu sua carreira por diferentes searas, como cinema e até óperas, e fez sucesso com seu trabalho solo -é dele a canção "Feito um Picolé no Sol". Mas se tornou mais conhecido pelo personagem Maestro Pletskaya, que conduzia "Tangos & Tragédias" com seu acordeom.

"'Tangos' é o que chamamos de espetáculo 'cult'. Teve gente que nos viu por mais de dez vezes, 50% do nosso público era novo, os outros já nos conheciam. Mudaram alguns quadros ao longo do tempo, mas o espetáculo continuou sendo essencialmente o mesmo", diz Hique.

Ele conta que no início não havia a pretensão de se fazer humor, algo que surgiu espontaneamente. Define o estilo da dupla como sendo gauchesco e urbano. Nico teria agregado o lirismo que lhe era próprio, com seu universo musical que remete aos cabarés alemães, ao klezmer (gênero musical da cultura judaica), às trilhas do italiano Nino Rota. "Ninguém se divertiu tanto quanto a gente."

Passaram pelos momentos DR, de discutir a relação. Isso foi mais ou menos quando completaram dez anos de parceria. "Começamos a falar sobre qual era o estilo pessoal de um e de outro."

E quem seria o yin e o yang? Segundo o músico Arthur de Faria, amigo da dupla, "Hique está para Jung, transbordante, arrebatador, e Nico estava para Lacan, minimalista e irônico". Os personagens que os dois interpretaram por três décadas eram seus alter egos, diz Hique. "Pletskaya é um apaixonado romântico, como o Nico. Já o Kraunus é visionário, preocupado com o planeta. Todo mundo tem um 'clown' dentro de si."

E como explicar "Tangos & Tragédias"? Em uma carta endereçada a Nico e a Hique, o respeitado maestro Hans Joachim Koellreutter identifica a fusão de crítica e humor, ironia e seriedade, e encontra ecos do personagem Carlitos, de Charles Chaplin, no trabalho da dupla.

Hique conta que recebeu muitas mensagens pedindo para o "reino da Sbornia" não morrer. Ele pensa em criar o Instituto de Artes Sbornianas, para resgatar a memória do trabalho da dupla.

E o que é a Sbornia? "Se você quiser uma explicação acadêmica, chamo o professor Ubaldo Kanflutz, arquiteto urbanista e gênio laureado pela Academia Sborniana de Ciências Fictizzias. Ele vai falar da drovedroica e da bomborgátzia! Você tem interesse nesses fenômenos? São fenômenos de flutuação de um teatro", diz Hique.

O reino inspirou um desenho animado, "Até que a Sbornia nos Separe", de Otto Guerra, com estreia prevista para este ano, com as vozes de Nico, Hique, André Abujamra e Fernanda Takai. "Cada pessoa tem a sua Sbornia. Todos concordam que é a mesma, mas ninguém tem muito detalhe", diz Hique, que segue tocando seus projetos solo em texto, música e teatro, como a direção da banda Rock de Galpão, que revisita músicas regionais do Rio Grande do Sul.

A casa de Márcia e Nina, agora sem Nico, segue com os vestígios de uma convivência pontilhada de boas lembranças: um piano azul, cortinas grossas de veludo vermelho, à moda dos teatros, um quadro de pintura naïf cujas nuvens se "libertam" da moldura para invadir a parede amarelada. Na cozinha, armários e gaveteiros receberam cores inspiradas em Mondrian. Os interruptores são vintage e coloridos.

Há também uma vasta coleção de brinquedos, fantoches e marionetes, coletados pela família em viagens no Brasil ou Patagônia, Grécia, México, Paris, Nova York. E livros, muitos livros. De Erico Veríssimo a Amós Oz, passando por autores pop como Bukowski, Kerouac, Crumb.

"Nico tinha uma sensibilidade muito particular. As pessoas achavam que, como nos palcos, ele também devia ser divertido em casa. Mas não era bem assim. Era exigente e metódico. Não usava relógio, mas era incapaz de se atrasar", conta Márcia.

"O Nico era na verdade um grande romântico. Muito ensimesmado e algo melancólico", segue a mulher. "Ele era engraçado não porque queria fazer graça, e sim porque era um cara autêntico."


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