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Marcelo Coelho

O país em marcha

As músicas compostas para a Copa do Mundo nem sempre conseguem encontrar o tom nacional

Reconheço que, como todo articulista que se preze, às vezes sou bastante ranheta. Mas a culpa não é só da profissão: a rabugice vem de família.

Eu tinha 11 anos na Copa de 1970, e me lembro bem quando ouvi em casa, pela primeira vez, a célebre marchinha de Miguel Gustavo sobre os não sei quantos milhões em ação.

Na hora deu para perceber que a música era empolgante. Mas o comentário, lá em casa, tendia para o negativo. "Hum. Isso aí vai encher."

Nem tanto. Sem ser musicólogo, acho que um dos segredos daquela melodia é que, um pouco como a música clássica, e principalmente como o próprio hino nacional, tudo procede por acumulação.

Sente-se isso até naquela introdução feita nas cordas (ou num coro de assobios, o que fica melhor ainda). Em vez de uma ideia curta, terminada em si mesma, a primeira frase da música acaba em suspenso, de forma quase interrogativa. A segunda frase, em vez de dar uma resposta rápida, aumenta a intensidade da pergunta inicial.

O suspense continua, porque a terceira frase repete o motivo por três vezes, como numa escadinha que cumprisse subir correndo, até a pausa que permite a entrada do coro.

Além disso, a música começa no grave e vai rumando certeira até o agudo. Quando chegamos ao refrão ("pra frente Brasil, Brasil, salve a seleção"), o desenho da melodia é descendente, e, se abstrairmos o ritmo, quase triste, em tom menor.

Nada é tão cansativo quanto o triunfalismo, e sem dúvida a gente se cansa menos quando a mensagem tende para o ambíguo e para o complexo. Um hino futebolístico ao mesmo tempo animado e triste, eufórico mas cheio de tensão, está sempre pedindo para ser ouvido de novo, porque dentro de nós seu recado não se absorveu de todo.

Ouvi algumas marchinhas --se é que vale o termo-- preparadas para a Copa de 2014. Do hino oficial da Fifa, nem é bom falar.

"Vamos ter de ganhar na bola, porque na música já fomos derrotados", disse o crítico Tárik de Souza a respeito de "We Are One", cujos intérpretes oficiais são Pitbull, Jennifer Lopez e Claudia Leitte.

De fato, trata-se de uma mistureba latina com rap, mais histérica do que animada, e que ninguém vai sair cantando. Mas é preciso levar em conta que se trata da voz oficial da Fifa, ou seja, não serve para animar a torcida de nenhum país em particular. Seu objetivo é celebrar a união de todos os povos, o congraçamento esportivo, esse tipo de conversa.

"Vamos espalhar felicidade, é a Copa de todo o mundo", aprova Gaby Amarantos, classificada na Wikipedia como cantora de "tecnobrega", num belo clipe da Coca-Cola. Como se trata de entidade tão internacional quanto a própria Fifa, a ideia da união entre 7 bilhões de torcedores é o que prevalece.

Mas há toques interessantes. Primeiro, porque as imagens procuram fugir do estereótipo das praias, dos biquínis e do verde-e-amarelo. Vemos garotos fazendo skate entre os pilotis de Lúcio Costa e uma mulata que, em vez de se oferecer aos gringos, é ela própria uma turista tirando fotografias da cidade.

Há outra ideia simpática nessa intervenção multinacional: embora o ufanismo esportivo esteja banido (é "o mundo inteiro dando um show"), anuncia-se que nós, brasileiros, vamos "juntar todo mundo para batucar". Alguma influência verde-e-amarela será benéfica às outras nações.

Nem tudo, entretanto, alcança tamanho equilíbrio químico no politicamente correto. Não sei mais em que vídeo do YouTube encontrei um grupo de rap no extremo oposto. Fala-se da bandeira verde, amarela, branca e azul. A rima é com azul. "Quem não for do Brasil vai tomar..." Abre-se um silêncio na trilha sonora, a ser preenchido pelo coro da torcida.

Entre a habilidade internacional e a agressividade periférica, há naturalmente espaço para a velha cultura brasileira nas músicas da Copa. O envolvente "jingle" da rádio CBN absorve o espírito de improvisação que caracterizou os preparativos do evento.

"De chaleira, de calcanhar,/ de bico ou trivela/ o importante é a bola entrar/ pra festa ser verde-e-amarela". Houve tempo em que exigíamos mais, ou esperávamos mais, da seleção.

"Só faz gol de placa", reage o sambista Arlindo Cruz, no simpático "Tatu Bom de Bola". "Vai ferver", canta Ivete Sangalo. Verso perigoso: será que ouvi "vai perder?"

Mas é a minha rabugice que volta. Na falta de melhor música, fico em silêncio.


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