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Crítica Romance

Narrador assume clichê como inevitável em livro kitsch

O personagem acha que ditar intimidades para um jornalista é a melhor terapia. Já não pode crer na teatralidade da análise

ALCIR PÉCORA ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "O Doente", de André Viana (Rio de Janeiro, 1974), o argumento revela o espírito do livro: aos 39 anos, um jornalista é diagnosticado com síndrome de pânico, sente que "precisa de ajuda" e, para isso, resolve contar os problemas que o afligem.

Mas não para um psicanalista, porque, neste caso, teria de pagar para ser levado "a sério", para não dizer que o sujeito iria "faturar", indiferente e distraído ("rabiscando lista de compras num caderninho").

Além disso, supõe que a situação de análise seja "teatral demais para acreditar" ("divã, essas coisas") e, principalmente, como o próprio Freud diz, que "a psicanálise não é o melhor meio de se fazer amar".

Tampouco amigos lhe parecem apropriados para esse fim. Para se fazer amado ou, eufemisticamente, descobrir no outro o amor, prefere falar ao gravador de um "colega" jornalista, que "adora ouvir histórias", "que tem bom humor" ("é essencial", quando se trata de "desgraças") e que publica "textos e reportagens" que são "dessa linha".

Não se trata de ironia. O narrador está convicto de que a melhor terapia é ditar as intimidades para o gravador de um jornalista. Já não é possível crer na teatralidade da análise, mas é crível e confortável ter a memória reescrita por um repórter curioso.

Na crise, portanto, a urgência está em ter sua história pessoal divulgada. O luxo, aqui, é ter à mão um repórter com bom "texto" a serviço do "eu" alheio.

Quem não pode dispor de um talvez tenha de postar por si mesmo. Paciência. Cada um caça o próprio drama íntimo com o repórter que tem ao alcance.

O drama, no caso, é o que se inicia com a morte do pai do protagonista, dono de um cinema no interior --cenário encantador no qual ele e um irmão mais velho serão criados.

A coincidência funesta de ela ocorrer no dia de seu aniversário de 11 anos faz com que, para ele, vida e morte se embaralhem. A elas, logo se junta amor, tendo o garoto uma paixão simultânea por um amigo e pela prima deste.

A mãe, contudo, nunca chega a assimilar o luto do pai, impedindo igualmente os dois filhos de superá-lo. Donde o protagonista conclui que está aí a semente da esquizofrenia do irmão mais velho e também a do pânico que o leva a ditar suas confissões.

Menos que confissões, são lembranças rápidas, primeiro beijo, primeira transa, o caso com um menino travestido de 18 anos, nas quais o caráter das personagens mal se esboça.

Tudo se concentra no protagonista, no que ele sente, acha interessante ou lindo, em seu efebismo ("não importa se é menino ou menina, o que importa é a juventude").

Também a bissexualidade, que poderia ensejar uma narrativa complexa, fica mais por conta de lembranças infantis do que experiências da vida adulta.

A razão, em parte, está no fato de o narrador assumir o clichê como inevitável e a banalidade como norma. Mas a razão principal está em que ele se ocupa menos em narrar o vivido ou imaginado do que em comentá-lo por meio de uma chuva de referências de literatura, cinema, artes plásticas, TV e música, com pitadas de história e filosofia.

A narração é, por assim dizer, conduzida pelo "name dropping". O efeito é kitsch, pois a citação é fiança vã do estatuto sensível ou intelectual do confidente.


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