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Algo de novo no reino de Shakespeare

Nos 450 anos de nascimento de Shakeaspeare, celebrados hoje, três novos livros, 'Shakespeare's Montaigne', 'Shakespeare in America' e 'Todas as Peças de Shakespeare', retomam vínculo do autor com os EUA e o Brasil

NELSON DE SÁ DE SÃO PAULO

O Brasil foi tomado por Shakespeare na metade do século 19, quando buscava sua identidade. De Álvares de Azevedo a José de Alencar, os escritores românticos o leram bastante, diz João Roberto Faria, da USP, autor de "Ideias Teatrais - O Século 19 no Brasil" (Perspectiva, 2001).

Os mais tocados pelo dramaturgo inglês foram Gonçalves Dias e Machado de Assis. O primeiro relacionou sua peça "Leonor de Mendonça", de 1846, a "Otelo", num "prólogo brilhante". O segundo adotou Shakespeare por referência após ver, como crítico, o mesmo "Otelo" e outras peças interpretadas pelo italiano Ernesto Rossi em 1871.

No ano seguinte, Machado lançou seu primeiro romance, "Ressurreição", "baseado num trecho de Shakespeare, que serve de epígrafe".

Depois, em "Dom Casmurro", como descreve Faria em "Tessituras, Interações, Convergências" (Hucitec, 2011), revisitou sua experiência ao relatar como Bentinho assistiu a "Otelo".

"E no Instinto de Nacionalidade', de 1873, você vê a importância que Machado dá a Shakespeare como autor que pode estimular a criação de uma literatura densa, de análise de caracteres", diz Faria.

PRIMEIRA MONTAGEM

Tanto Faria como Bárbara Heliodora, tradutora e ensaísta, destacam que o século 19 não viu representação brasileira do dramaturgo. O maior ator do teatro romântico, João Caetano, usou adaptações francesas. "É incrível, mas o primeiro Shakespeare por brasileiros é o Romeu e Julieta' de 1938", diz Faria.

"Eu vi, tinha uns 15 anos", conta Heliodora, 90, rindo. "No século 19 e no início do 20, Shakespeare sofreu com professores horríveis, que faziam do conhecimento uma coisa privativa. Ele foi artificialmente dificultado."

Isso só foi mudar quando o diplomata Pascoal Carlos Magno, enviado a Londres, "descobriu que lá todo mundo montava". No retorno ao Rio ele lançou o Teatro do Estudante do Brasil com "Romeu e Julieta" e produziu outros textos shakespearianos, inclusive o "Hamlet" do ator Sérgio Cardoso, em 1948.

Heliodora mantém até hoje o esforço de tornar o dramaturgo acessível aos brasileiros: ela lança em agosto "Todas as Peças de Shakespeare" (Edições de Janeiro).

"É para as pessoas se apresentarem a ele, com uma introdução à vida e resumo de cada peça, com pequenos trechos das minhas traduções."

NOVO MUNDO

Entre as principais edições comemorativas dos 450 anos no mundo, será lançado amanhã em Nova York "Shakespeare in America" (Library of America), organizado por James Shapiro, de Columbia, autor de "Quem Escreveu Shakespeare" (Nossa Cultura, 2012).

A antologia reúne desde textos do ex-presidente Abraham Lincoln, com sua predileção por "Macbeth", até o do ator John Wilkes Booth, que justifica a decisão de assassinar o próprio Lincoln citando "Júlio César".

Bill Clinton, no prefácio, diz que Shakespeare "tocou pouco no Novo Mundo", lembrando a peça "A Tempestade". "Mas o nosso engajamento com ele vem de longe, geração após geração."

Shapiro destaca o impacto de Shakespeare durante a Guerra Civil não só sobre Lincoln e Booth, mas sobre inúmeros escritores e lembra um "episódio memorável": Ulysses S. Grant, depois presidente, ensaiou "Otelo" para uma montagem militar, vestido como Desdêmona.

"Os EUA do meio do século 19, por toda parte e todas as classes, estavam obcecados com Shakespeare", diz. "Tinha a ver com o fato de que seus grandes discursos estavam disseminados pelas salas de aula e ele não era considerado propriedade dos ricos e privilegiados: as peças pertenciam a todo mundo."

Além disso, "muitas das questões com que os americanos se debatiam ao forjar sua identidade nacional, inclusive raça, republicanismo e imigração, que não eram fáceis de enfrentar, se desenrolavam ao encenar ou escrever sobre peças de Shakespeare".

Outro livro no centro das comemorações é "Shakespeare's Montaigne" (NYRB), lançado há duas semanas. Com organização de Stephen Greenblatt, de Harvard, autor de "Como Shakespeare se Tornou Shakespeare" (Companhia das Letras, 2012), reproduz e analisa o impacto dos "Ensaios" do filósofo francês Montaigne (1533-1592) sobre o dramaturgo.

Grennblatt abre a edição relatando que, ao escrever "A Tempestade", Shakespeare tinha sobre a mesa uma recente tradução dos "Ensaios". A obra estaria aberta em "Sobre os Canibais", no qual Montaigne trata de um encontro com três tupinambás do Brasil.

Veio daí o célebre personagem shakespeariano Caliban, anagrama de canibal. Não há nele a dignidade dos índios do ensaio, diz Greenblatt, mas há, sim, nuanças positivas: "Ou, pelo menos, há enorme poder. Poder representado não como consequência da nobreza inata do selvagem, como em Montaigne, mas ligado a outras qualidades: superstição, bebedeira, credulidade".

É esse Caliban bêbado, supersticioso, mas de "intensa sensibilidade à natureza, de confiança e generosidade instintivas com estranhos", a imagem que Shakespeare fazia do Novo Mundo, no início da colonização do que seriam Brasil e EUA.


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