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Marcelo Coelho

Dane-se o padrão Fifa

A coletânea 'Eram Todos Camisa Dez' narra os encantos e misérias dos campinhos de terra

O jogo entre o Legião e o Atlético Ceilandense, pelo campeonato de futebol de Brasília, foi às dez da manhã de um dia útil.

No estádio Bezerrão, o público era de nove pessoas, rendendo um total de R$ 90. Talvez o público de Brasília se ressinta do fato de que o estádio não tem, digamos, um padrão Fifa.

Não faz mal; com vistas à Copa do Mundo, foi construída uma "arena" nova, o estádio Mané Garrincha, com capacidade para 71 mil espectadores. Só que, como alerta o jornal "Valor", a média de público no campeonato estadual de Brasília, o "Candangão", é de pouco mais de mil pagantes por jogo.

Continuo lendo o que escreve Patrick Cruz, em reportagem publicada na sexta-feira passada. Seu objetivo é mostrar a "face real" do futebol brasileiro.

Veja-se o caso do goleiro Adeilson, do União Cacoalense, de Rondônia. Ele chegou a passar nove meses sem time (e sem salário); arranjou-se como servente de pedreiro e entregador de folhetos publicitários.

Há também a história de um torcedor como Tibério Barreto, torcedor do Auto Esporte de João Pessoa. Comemorava um gol de seu time contra o Sousa, no campeonato paraibano, quando caiu da arquibancada do estádio Almeidão --que desobedece ao padrão Fifa. Morreu de traumatismo craniano.

Personagens assim poderiam aparecer nas crônicas de Luiz Guilherme Piva, colaborador do blog de Juca Kfouri, que lança agora a coletânea "Eram Todos Camisa Dez" (ed. Iluminuras).

Ele se volta, assim como a reportagem do "Valor", para o mundo dos campinhos humildes, dos meninos descalços e das bolas feitas de papel velho enrolado em fita crepe.

O assunto se presta a muita pieguice, mas Luiz Guilherme Piva sabe driblar esse perigo. Primeiro, porque é muito bom quando se trata de descrever as coisas com precisão.

"O campinho de terra, depois de uns dias de chuva, resseca no sol forte. Tem uns pedaços do barro que endurecem e ficam como lascas de ovo de páscoa. Outros pedaços cedem sob os pés e esguicham barro esmagado entre os dedos."

Mesmo um garoto urbano, acostumado às quadras de prédio, pode reconhecer essas cenas da experiência simples, feitas ao mesmo tempo de precariedade e força, de fragilidade e abundância.

Não se está lamentando a falta de gramados perfeitos para as crianças do Brasil; que ninguém derrame lágrimas por isso. Trata-se, quem sabe, de lembrar que o jogo é mais importante do que o sucesso, e que a sensação da terra úmida nos pés é mais importante do que o jogo. Dane-se, portanto, o padrão Fifa.

Piva tem outra tática para evitar o sentimentalismo. Trata-se de reservar para o finalzinho do jogo a surpresa decisiva.

Tome-se, por exemplo, a história do camisa 5 que "morava e comia de favor numa oficina", que tem "cabelo de estopa, pingando óleo". É um miserável, que nunca se aventura além do meio de campo.

Serve, diz o narrador, como um escudo a proteger o seu gol. "Fora dali não tinha nada", conclui o texto --mas acrescenta que, para o personagem, "talvez fosse uma bênção ter o que guardar"...

Em outro texto, Piva reflete sobre os saudosistas do futebol. Os saudosistas de hoje não são grande coisa, diz. Bons são os saudosistas de antigamente: "falavam de um futebol que eu não vi".

Ele prossegue. Quanto mais passa o tempo, mais extraordinárias as jogadas. Vem o arremate. "Fica cada vez mais provável que o seu time venha, enfim, a vencer aquela decisão perdida, dolorosamente, em algum momento da sua infância."

Um comentário final. É curioso que, num país ébrio de ufanismo futebolístico, seja tão forte a paixão pela derrota --pelo jogador fracassado, pelo time de várzea, pelos anos sem conquista de campeonato estadual.

Talvez porque, ao contrário do famoso lema, acreditemos que "o povo unido sempre será vencido". A esquerda viciou-se na derrota.

Assim, rejeitamos o espetáculo global, os bilhões de dólares em jogo; não serão nossos. Há alguma usurpação nisso tudo.

Simpatizo com a atitude, mas vejo seus limites. Apesar das misérias da várzea, é provável que nunca tenhamos tido tantos times e jogadores como hoje em dia. De todo modo, não me deprimo com quem está na quarta divisão; ainda que a gastança com a Copa seja uma estupidez, o problema da injustiça se resolve em outro jogo, em outro campo.


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