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Crítica - Romance
Linguista cria narrativa sobre a perda da memória e do idioma
LUIZ BRAS ESPECIAL PARA A FOLHAEstamos em plena Segunda Guerra Mundial. Num píer próximo da estação ferroviária de Trieste, é encontrado um pobre-diabo com a cabeça arrebentada.
Marinheiros levam o moribundo ao navio-hospital Tübingen, onde é tratado pelo doutor Petri Friari, que consegue salvar sua vida. Mas não sua memória, muito menos sua identidade e seu idioma.
Evidências circunstanciais sugerem que esse paciente amnésico e afásico é finlandês --um conterrâneo do doutor Friari.
O premiado romance "Nova Gramática Finlandesa", do italiano Diego Marani, narra a batalha particular de Sampo Karjalainen (será mesmo esse seu verdadeiro nome?) para recuperar a história e a identidade dissipadas.
Sampo sente-se "um homem morto pela metade, privado do passado, de seu nome, de sua língua, obrigado a viver sem uma lembrança, uma saudade, um sonho".
Idioma e memória são esferas interligadas, que forjam a identidade. Recuperar a primeira, por meio do estudo do finlandês, talvez traga de volta todo o resto.
Essa batalha silenciosa, ameaçada por bombardeios e invasões, conduz o rapaz a Helsinque, onde conhecerá o pastor luterano Olof Koskela e a enfermeira Ilma Koivisto.
O aprendizado do finlandês passa pela "Kalevala", epopeia nacional da Finlândia, composta no século 19 a partir de antigas canções populares. Para Koskela, meio xamã meio bardo embriagado, tudo começa e termina nessa cosmogonia lírica.
A oportunidade de se dissolver na inconsciência afetiva surge com Ilma, mas é rejeitada por Sampo. O vazio repele as investidas do amor.
Nesse romance de estreia, lançado na Itália em 2000, e em obras posteriores, Diego Marani, que também é linguista e tradutor, expressa com argúcia sua crença no poder modelador dos idiomas maternos.
Como se afirmasse que o mapa de um cidadão ou de um país principia sempre num dicionário e numa gramática.
Marani é apaixonado pela palavra. Em 1996, enquanto trabalhava como tradutor para o Conselho da União Europeia, criou o irreverente europanto, língua que mistura elementos de muitas outras.
Nada que ofusque nosso glorioso portunhol selvagem --uma mistura de português e espanhol, com pitadas de guarani e inglês--, idioma alternativo lançado pelo poeta brasiguaio Douglas Diegues e adotado por dezenas de artistas e escritores.