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Marcelo Coelho

Vai ter de engolir

Eu estava em minoria, é claro. Dada a felicidade geral, vem logo a sensação de que o errado sou eu

Peguei um voo para Brasília, na semana passada. O atraso de quase uma hora estava, digamos, dentro do normal.

Nem tão normal era o movimento de uma equipe de TV perto do avião. A fuselagem era o motivo: tinham-na pintado de verde e amarelo, e com um imenso logotipo ainda por cima. Toda a "aeronave" era um veículo de propaganda do guaraná Antarctica.

Ótimo. Um grupo de passageiros, não sei se pagos para animar a coisa, entusiasmou-se e tirou seus "selfies", enquanto eu desconfiava que o atraso no embarque tinha algo a ver com isso.

Já na escadinha, topei com o aviso insultante.

Ao entrar neste avião, dizia o cartaz, você está concordando em ter sua imagem divulgada na próxima campanha publicitária do guaraná Antarctica.

Como assim? E se eu não concordasse? Deveria descer da escadinha, requerer minha bagagem de volta, fazer novamente o check-in e chegar atrasadíssimo ao meu compromisso?

Não havia alternativa, exceto a de entrar, com cara de poucos amigos, no elenco de extras que faria parte do anúncio a ser filmado.

Quanto custa alugar um avião e remunerar uma centena de falsos passageiros? A economia seria feita com a minha colaboração, imposta sem nenhuma cerimônia.

No corredor, profissionais já se espremiam com câmeras e aqueles microfones que parecem os chapéus de pelo de urso da guarda real britânica.

Menos mal: avisaram que, se alguém discordasse da filmagem, poderia avisar a aeromoça. Uma foto de mim teria de ser tirada, entretanto, para que na hora da edição cortassem o meu rosto.

Achei que seria mais fácil passar o resto da viagem com o dedo médio em riste, obtendo imediata supressão da face do meu descontentamento. Mas aí seria excesso de mau humor, e não fiz nada. Ah, terá pensado alguém mais oportunista do que eu, quem sabe depois dá para entrar com um processo...

Mas àquela altura só havia felizes no avião. É que o aviso de atar cintos tinha sido dado por uma figura simpaticíssima, o craque Cafu, da seleção de 2002. Vestido de comissário de bordo, foi ele quem serviu o "lanche especial" e, claro, o guaraná gratuito aos passageiros.

Enquanto isso, uma cantora de sucesso declarava seu amor a todos nós e ao Brasil, obtendo vivas e o-la-lás de todo mundo.

Eu estava em minoria, é claro. Isso nem sempre é um problema. Aprendi, contudo, como pode ser difícil o simples ato da resistência silenciosa. Dada a felicidade geral, vem logo a sensação de que o errado sou eu. Todos, de Cafu ao passageiro do meu lado, entregavam-se de boa vontade ao que acontecia.

A folia não durou mais que uma hora e meia. Eu não tinha de fazer nada, a não ser ficar em silêncio, sem olhar para os lados. Já era o suficiente para me sentir culpado: eu, o ranzinza; eu, o do contra; eu, o que ainda preserva crenças esquerdistas e não aceita entrar no jogo das agências publicitárias e das celebridades que mal conheço.

Imagine então alguém que, sozinho numa multidão, se recusasse a levantar o braço na saudação nazista. Ato minúsculo, e além disso inútil, numa situação daquelas. Percebi que talvez eu não conseguisse; a constatação me deu mais força, em todo caso, para manter a cara fechada naquele festival de brasilidade forçada.

Muito menos do que a questão dos gastos na construção de estádios e outras bobagens, acho que vem daí a minha antipatia com a "Copa de todas as Copas". O que me incomoda é a sensação, presente nos governantes e empresas interessadas no evento, de que basta promover um evento exaustivamente que todo mundo vai ter de engolir.

As velhas manipulações da era Médici, com "o país que vai pra frente", o "ritmo de Brasil grande" e o "ame-o ou deixe-o", não passaram por uma renovação que lhes desse grande acréscimo de sutileza.

O slogan do "não vai ter Copa" parece, entretanto, uma recusa ao oba-oba programado; a recusa se mistura com outro sentimento, o medo de repetir-se o "maracanazo" de 1950.

A recusa se torna mais forte, sem dúvida, quando a propaganda deixa de ter origem puramente oficial, para se privatizar em grande escala. Um avião, de empresa privada, é privatizado por uma marca de refrigerantes, e o que houver de coletivo entre os passageiros se põe, gratuitamente, a seu serviço.

Quando vejo os que ainda dizem "não vai ter Copa", não me animo muito. Mas pelo menos sinto que não estou sozinho.


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