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Crítica - Romance histórico

Mito e gênero policial dialogam em narração de falsas verdades

O LEITOR, PRESO À CIRCULARIDADE DA NARRATIVA, VÊ-SE CONDUZIDO A UM TERRITÓRIO MÁGICO, NO QUAL LENDAS INDÍGENAS QUE JAMAIS EXISTIRAM TORNAM-SE REALIDADE E PISTAS FALSAS ILUDEM

RODRIGO GURGEL ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "A Primeira História do Mundo", de Alberto Mussa, o narrador tem um objetivo claro, que vai além de esclarecer a autoria do primeiro crime ocorrido em terras cariocas.

Trata-se de investigar a origem mitológica da sociedade na qual, ao contrário do que acredita o senso comum, convenções ou acordos --tácitos ou explícitos-- serviam apenas para encobrir a ordem frágil e, às vezes, pontuada de heroísmo.

O leitor, portanto, não tem um encontro marcado com a figura lacônica do comissário Maigret ou com a dedutiva Miss Marple.

E ainda que o narrador se refira a Edgar Allan Poe e Agatha Christie, resta-lhe, do gênero policial, apenas a desconfiança permanente, transpassada, entretanto, por dúvidas sem fim, que o fazem repetir: "talvez", "provavelmente", "devia ser", "é possível imaginar", "como sugerem...".

Onisciente, mas oblíquo, esse narrador afirma não querer contaminar sua história com "soluções ficcionais" --mas, logo a seguir, salienta que relatará os fatos usando "alguma liberdade".

Soma-se a tais características um viés supostamente antropológico, cujos únicos apoios são lendas e especulações imaginosas.

Na verdade, tudo é sonho: à imprecisão dos testemunhos acrescentam-se as histórias pessoais --marcadas por algum prodígio-- de cada suspeito, da vítima e da talvez "belíssima" Jerônima Rodrigues, pivô do crime.

Pronto a recordar as imprecisões da trama que remonta a tempos primevos, quando o homem ainda lutava para se libertar da natureza opressora, o narrador também não despreza os elementos típicos do gênero fantástico.

Mas a ironia sobrepuja a tese. Há algo de zombeteiro no narrador moralista que, logo nas primeiras páginas, pontifica: "Numa cidade onde há mais homens que mulheres, não pode haver virtude"; e que, depois de considerar o cristianismo uma superstição, expõe, crédulo, crenças misteriosas, fortes o suficiente para proibi-lo de esclarecer por completo sua fé pessoal.

ENIGMAS

Página a página, o leitor, preso à circularidade da narrativa, vê-se conduzido a um território mágico e aliciante, no qual lendas indígenas que jamais existiram tornam-se realidade, pistas falsas iludem, onças podem sitiar, noites seguidas, o lugarejo --e um momento de desatenção embrenha o andarilho na mata escura onde o bom selvagem jamais existiu.

"O livro tem enigmas que vão além do próprio crime", diz o narrador, enlaçando suposições.

Hábil mentiroso, insistindo em suas falsas verdades, ele pretende que interrompamos nossa descrença. E, por um momento, submetidos pela literatura, aceitamos que tudo é real.


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