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Morfina com glicose

Artista Nuno Ramos cria jogo de oposição entre euforia e anestesia em nova série de obras monumentais, como um caminhão com toneladas de tijolos e seu projeto para congelar um enorme bloco de água do mar

SILAS MARTÍ ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE

No chão do museu estão réplicas da ossada de um barco e dos trilhos de uma montanha-russa. Essas estruturas de latão e alumínio estão entreligadas por tubos plásticos que fazem circular por dentro delas doses de morfina e glicose, num coquetel de "opostos que se amortecem".

Nuno Ramos, 54, enxerga nessa sala da mostra que acaba de abrir na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, uma síntese de todo o seu pensamento plástico. "Sou um cara que gosta de fazer essa passagem entre opostos."

De fato, a obra do artista, que despontou nos anos 1980 e se tornou um dos maiores nomes da arte contemporânea do país, parece oscilar entre a dimensão trágica das lápides rodeadas de urubus que levou à Bienal de São Paulo há quatro anos e a fúria extática de um globo da morte, que abalou as estruturas de uma galeria no Rio.

Há dois anos, Ramos montou uma esfera metálica na galeria Anita Schwartz rodeada por prateleiras cheias de objetos frágeis. Em 55 segundos, o movimento dos motociclistas lá dentro fez tudo tremer e se espatifar no chão.

Ele também já simulou o choque de dois aviões monomotores contra a copa de árvores ressecadas em pleno Museu de Arte Moderna do Rio, numa espécie de tragédia orquestrada, e já levou jumentos a uma exposição no Instituto Tomie Ohtake.

Mas, solenes ou histéricas, suas obras têm sempre a mesma escala --monumental. Em novembro, o artista vai remontar seu globo da morte na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, e se prepara para abrir uma individual só com pinturas inéditas no mesmo museu no ano que vem.

Mas seus planos, por enquanto, permanecem grandiosos e em três dimensões.

BUSCA PELO CHOQUE

Noutra sala da mostra gaúcha, a quilha de verdade do barco e um pedaço dos trilhos da montanha-russa estão debruçados sobre o vão livre do museu desenhado pelo arquiteto português Álvaro Siza.

São hastes que ostentam objetos em cada ponta, simbolizando trocas, algo que o artista vê como o "suicídio econômico" de dar um copo de água do mar em troca de um violoncelo ou até um cavalo em troca de um pierrô.

"Tentei criar encontros disparatados de coisas que não faz sentido trocar. É uma transação não ancorada em questões de valor", diz Ramos. "Busquei mais o choque."

De certa forma, esse novo trabalho é a materialização explícita de um assunto que aparecia de modo latente em outras obras, como a instalação em que afundou réplicas das três casas onde já viveu em enormes piscinas de lama que escavou no piso de uma galeria em Belo Horizonte.

Mas agora, o cavalinho pendurado sobre o vão do museu ou o violoncelo equilibrado ali tomam a dianteira. Ou seja, o objeto real ocupa o lugar da representação.

"Minhas coisas estão saindo de um momento mais amorfo para uma coisa mais individuada", diz Ramos. "É como se o que era pantanoso pudesse comportar o real."

GELO E TIJOLOS

Nessa mesma pegada, Ramos acaba de inaugurar no Museu da Imigração, em São Paulo, outra grande instalação com o peso da realidade.

Em alusão aos escritos de Primo Levi, em que o italiano vítima do nazismo vê nos tijolos de uma torre um símbolo da exploração, Ramos encomendou 27 toneladas de tijolos, carregou tudo num caminhão e mandou torcer sua carroceria, que rasgou espalhando a carga pelo museu.

"É uma maldição ao trabalho", resume. "E esse desejo vazou para o caminhão."

Ramos também se prepara para outro megaprojeto com o mesmo excesso visual. Em Natal, o artista vai congelar 15 toneladas de água do mar e deslocar a massa de gelo para o centro da cidade, em mais uma ação que provoca deslumbramento por seu volume e questiona a ideia de algo que seria impossível.

Impossível, aliás, não parece ser uma palavra no vocabulário de Nuno Ramos.

Sua obra "mimada", como ele mesmo classifica, conta com orçamentos vultosos --a produção de alguns trabalhos já bateu a marca dos R$ 400 mil-- para a sua execução.

Mas é uma megalomania que se articula, na opinião dele, numa crítica a um quadro de "imobilismo" geral no país e entre seus artistas.

"Tenho dificuldade com coisas satisfeitas consigo mesmas", diz Ramos. "Arte é para se jogar. É preciso tirar os artistas de suas cascas."


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