Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrada

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Reencenando o silêncio

Censurada em 1968, Bienal da Bahia é recriada quase 50 anos depois que obras foram confiscadas pela ditadura militar

SILAS MARTÍ ENVIADO ESPECIAL A SALVADOR

Lápides no mosteiro de São Bento, em Salvador, trazem nomes de obras de arte desaparecidas, tal qual defuntos. Essas placas fabricadas agora são como fantasmas dos trabalhos que sumiram sem deixar rastro quando a Bienal da Bahia de 1968 foi censurada por agentes da ditadura.

Era a segunda edição da mostra. Logo depois da abertura, algumas peças foram confiscadas e artistas chegaram a ser presos. Quase 50 anos depois, curadores remontam em Salvador parte daquela exposição e escalam cerca de 200 autores para o que chamam de uma terceira edição do evento.

"Não é um remake, a gente não queria uma imitação", diz Marcelo Rezende, curador da mostra. "É uma coisa mais voltada para o embate. Queríamos reencenar uma luta."

No caso, não só o conflito entre censura e liberdade de expressão, mas entre versões díspares da história da arte, aquela narrada pelo olhar dos grandes centros e outra calcada na realidade local.

"É uma caixa de ressonância. Fala de censura e trauma", diz Fernando Oliva, outro curador da mostra. "Feridas estão sendo reabertas. São operações de retomada."

E também de provocação. Ao mesmo tempo em que se enquadra na onda de remontagens de exposições mundo afora, com mostras históricas sendo refeitas de Veneza a São Paulo, a exposição baiana tenta lançar luz sobre a fragilidade da memória em referência à época da ditadura.

Um eixo central da mostra, que se espalha por 80 espaços de Salvador, é o mosteiro de São Bento, onde obras de artistas contemporâneos, como Ana Lira, Arthur Scovino, Rodrigo Matheus e Thiago Martins de Melo, estão misturadas a peças da era colonial, como um Cristo de madeira todo ensanguentado.

Também estão ali trabalhos de artistas censurados na Bienal de 1968, como Juarez Paraíso, com a escultura "Homem-Tubo", uma pedra com uma enorme boca gritando e seus dentes à mostra.

É uma imagem de desespero em sintonia com a época do regime militar. Chico Liberato, um dos artistas que participa da exposição atual e esteve nas duas primeiras edições, não esqueceu o terror.

"Todos nós ficamos desolados com a coisa. Nunca mais vi minhas obras", diz Liberato. "Isso foi um hiato na arte brasileira, um desgosto que aterroriza as pessoas."

Tanto que alguns artistas se recusam a voltar àqueles tempos. Antonio Manuel, português radicado no Rio que esteve na mostra de 1968, não quis participar da reencenação que está agora em cartaz, exigindo antes uma retratação do governo baiano, que não se manifestou.

"Ele sofreu a censura de um governo militar, e nós vivemos numa democracia", diz Oliva. "A Bienal está sendo feita em tempos democráticos, trazendo de volta traumas para que possam ser superados, mas não é capaz de reparar um dano histórico da magnitude de uma ditadura."

MEMÓRIA E REPARAÇÃO

Talvez daí o foco na memória como espécie de reparação. Outro braço da mostra, no Arquivo Público do Estado, leva obras ao prédio colonial que foi um leprosário por 200 anos e hoje abriga documentos como passaportes de escravos e relatos de revoltas que abalaram a Bahia.

Mesmo sem luz elétrica, a construção, que terá intervenções nos jardins e ficará aberta só durante o dia, ilustra com a própria decadência um estado de abandono.

"Trazer artistas para cá é como ter chaves para abrir os arquivos", diz Ana Pato, curadora dessa parte da mostra. "É a arqueologia do espaço."

Na ilha de Itaparica, Camila Sposati também resgata o passado. Atrás de casarões coloniais em vias de desabar, a artista cavou um buraco para construir um teatro em forma de funil, inspirado nos espaços renascentistas para exibir dissecações de cadáveres.

"Meu trabalho tem sempre essa questão de arqueologia", diz Sposati. "É a escavação de um mundo paralelo atrás dessas casas largadas."

Em contraponto à ruína, o baiano Maxim Malhado ergueu casas de taipa num pátio da Universidade Federal da Bahia, deslocando a vida rural até o centro da cidade.

É como se questionasse ali a natureza das relações entre centro e periferia e acrescentasse mais uma camada ao teatro da reencenação. "Já vivi numa casa assim", diz Malhado. "De dentro da casa de taipa, vejo o mundo lá fora."


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página