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Álvaro Pereira Júnior

O pior filme do mundo

Em 'Lucy', com Scarlett Johansson, a filosofia é de autoajuda, a trama é pobre e nada faz sentido

Em uma ruela de Taiwan, em frente a um hotel de luxo, um malandrão de chapéu de caubói (claro) e uma moça piranhosa com blusa de oncinha (óbvio) batem boca. O pilantra quer que a boneca faça uma entrega no hotel: uma valise, segundo ele, cheia de documentos. Ela pressente o perigo. Ele insiste.

O jovem se chama Richard, interpretado pelo dinamarquês Pilou Asbaek (da série "Os Bórgias"). O nome dela é Lucy, a esplendorosa Scarlett Johansson, mais linda do que nunca.

Apesar da qualidade dos atores, a cena parece interpretada por duas pessoas quaisquer, que a equipe de produção parou na rua e pediu que lessem seus diálogos, sem ensaiar, diretamente de um teleprompter.

"Esse diretor indie não sabe dirigir atores", pensei, desinformado das novidades do cinema. Vi o filme no exterior, esta semana, na última noite de uma viagem muito corrida de trabalho. Não sabia que "Lucy" não era de qualquer cineasta iniciante, mas do notório Luc Besson.

Voltando à história: Richard força Lucy a entregar a pasta. A loira cai nas garras de uma gangue sanguinária de traficantes coreanos, que implantam na barriga dela um saco com uma nova droga, tão poderosa que faz o ecstasy parecer aspirina.

Lucy deveria levar o pacote para os EUA, de onde ele seria retirado de sua linda pancinha para distribuição. Mas, antes da viagem, a droga vaza, entra na corrente sanguínea da moça, seu cérebro sofre transformações, e ela adquire não um ou outro superpoder, mas todos os superpoderes.

Corta para uma palestra em Paris, onde um renomado neurocientista (Morgan Freeman), explica suas "teorias": "Usamos apenas 10% da capacidade do cérebro". Ambiente austero, tudo sugere alta voltagem intelectual. Mas a fala do professor é indigente.

Suponha que a conferência fosse para agrônomos com pós-doutorado no cultivo de laranjas. Seguindo o nível de profundidade da fala do sábio, sairia algo assim: "As laranjas são frutas. E essas frutas não surgem do vácuo celestial. Não! Elas crescem em árvores! E essas árvores, sim, brotam a partir de sementes, que concentram energia cósmica. Semente, árvore, fruta: uma conspiração do universo... a vida!" E a plateia: "Ohhhhhh!".

Esse é o nível: autoajuda de livraria de aeroporto, filosofia de fundo de quintal. Em termos de pretensão e ridículo, só encontro comparação com "A Fonte da Vida", de Darren Aronofsky, e mesmo assim o páreo é duro.

Em um texto furioso contra Paulo Coelho, Héctor Abad Faciolince, um dos principais escritores da Colômbia, acusa o brasileiro de usar recursos tão simplórios que só podem ser analisados à luz do universo infantil.

O crítico recorre ao ensaio "Morfologia do Conto Maravilhoso" (1928), de Vladimir Propp, em que o estruturalista russo lista elementos repetitivos nas histórias para crianças: "o herói abandona sua casa"; "o herói é posto à prova ou interrogado"; "o herói tem contato com alguém que lhe dará um dom"; "o herói recebe um objeto mágico" etc.

Não conheço a obra de Paulo Coelho o suficiente para dar ou não razão ao colombiano. Mas, se fosse sobre "Lucy", a crítica de Abad Faciolince seria precisa.

Além da pobreza dos diálogos e da obviedade da trama (Luc Besson parece ter um metrônomo no cerebelo --tudo acontece exatamente no instante em que os chavões de roteiro mandam que aconteça), nada faz sentido em "Lucy".

Por que a ação começa em Taiwan? Imagino que seja pelo mesmo motivo que uma escola de samba se dispõe a louvar até as glórias do ácido fosfórico: basta que o fabricante do produto banque o desfile. O governo da ilha deve ter dado uma boa ajuda aos produtores.

Em um instante, Lucy mata meio mundo para conseguir arrancar de seu organismo o pacote da droga. Pouco depois, ela mata a outra metade do planeta para conseguir mais quantidade dessa mesma droga da qual, pouco antes, estava tentando se livrar.

Entre os superpoderes, está o de saber tudo sobre todos os assuntos. Por que, então, ela precisa tão desesperadamente contatar o neurocientista de Morgan Freeman? Pergunte a Luc Besson.

"Anger is an energy", berrava Johnny Rotten numa Londres afundada no lixo, governo trabalhista em caos, o pesadelo Thatcher à espreita.

Quase 40 anos depois, a frase ainda faz sentido. "Lucy" dá tanta raiva que traz energia. A energia de espinafrá-lo.


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