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Como vovó fazia

Novo selo de literatura erótica da editora Hedra apresenta clássicos e uma estreia sobre a carne e seus desejos

BARBARA GANCIA COLUNISTA DA FOLHA

O novo selo Sexo, lançamento da editora Hedra, não pretende desvendar tudo o que você sempre quis saber sobre literatura erótica, mas teve receio de perguntar depois de "50 Tons de Cinza".

Com a promessa de lançar nove obras sobre a carne e os desejos que ela enseja, em oito clássicos e uma obra de estreia, a Hedra chega com três títulos que prometem chamar a atenção de uma geração pré-comatosa em matéria de sexo, cujo contato se dá intermediado por drogas estimulantes, energéticos ou uma tela de computador.

Não me queira mal. Na minha época não era muito melhor.

"Nunca se falou tanto no assunto e se fez tão pouco", foi o bordão do meu tempo. Veio depois --logo depois-- de os personagens do filme "Bob, Carol, Ted e Alice" (1969) despertarem de uma ressaca moral de uma suruba mal sucedida.

Pessoal empapuçou do excesso, perdeu a vontade.

Estes são os tempos da medicalização, do entorpecimento. Alteradores de humor amenizam a dor e, na rebarba, inibem o apetite sexual.

O desejo anda flácido.

E dá-lhe reproduzir rave de Ibiza todo sábado para despertar o gigante adormecido. Haja imaginação...

Salve, rainha Vitória! Os dois primeiros livros da lista da Hedra nos ensinam que não há nada com uma boa repressão vitoriana (entre 1837 e 1901) para cutucar a libido.

O que há em comum entre os três livros da primeira leva é que cada um quebra um tabu à sua maneira.

Penso que a escolha do texto do poeta e escritor vitoriano Algernon Charles Swinburne (1837-1909), cuja obra pende para a pornografia, o sadomasoquismo, a necrofilia e a autoflagelação deve ter sido feita em razão de ele ter criado, 60 anos antes, uma "Lolita" tão picante quanto a de Nabokov.

"Flossie, a Vênus de Quinze Anos" é uma órfã virginal presenteada a um certo capitão Archer para que ele faça dela o que quiser.

O livro é de 1897, quando a literatura erótica nem existia como possibilidade comercial. Aliás, só seria concebido no âmbito policial.

Nossa heroína cabia direitinho no espartilho da dupla moralidade vigente da época. Nem sequer nos "swinging sixties" Londres viu tantos bordéis, prostitutas circulando pelo East End e índices de doenças venéreas quanto no reinado da rainha Vitória.

Eva Latchford, a personagem que oferece Flossie ao capitão, faz uma recomendação: "Pode ficar à vontade, ela acaba de vir de Paris. Lembre-se, ela tem apenas 15 anos. Trate-a com muito carinho e conseguirá dela tudo o que quiser. Existem meios."

Ou seja, só não chegue aos finalmentes. De resto, vale tudo. E Flossie seguia todos os conselhos de Tim Maia, desconsiderando as ressalvas sobre "homem com homem" e "mulher com mulher".

BACANAL

O segundo livro, "O Outro Lado da Moeda", ou "Teleny", já chocou tanto quanto "O Amante de Lady Chatterley", de D.H. Lawrence (1885-1930). Mas é bem mais inócuo do que "120 Dias de Sodoma", em que o Marquês de Sade (1740-1814) peita sozinho Igreja, Estado, família e patriarcado.

Estamos falando da obra, de início atribuída a Oscar Wilde (1854-1900), mas que, depois verificou-se, teria sido escrita a várias mãos, bocas, coxas e pernas, num bacanal de ideias reunidas por amigos do autor irlandês e regidas sob sua batuta. Que mau gosto, Barbara, sinceramente.

Um dos primeiros textos a desafiar o sistema falando abertamente de um amor homossexual com uma dose intensa de romantismo entre homens da casta superior, situação análoga à que Wilde vivia, fez história.

Se, por um lado, acabou sendo o estopim que levou o escritor à prisão, por outro, foi o motor que causou a mudança das leis sobre sodomia no Reino Unido.

IRRACIONAL

"Tudo que Eu Pensei mas Não Falei na Noite Passada", o terceiro livro, não esconde o ato sexual atrás de descrições veladas. Não estamos falando de sentimentos. Afinal, sexo é a antítese da razão, descrevê-lo seria negar sua natureza irracional.

A autora, de quem nada sabemos, apenas que é novata e contemporânea e escolheu o "nom de plume" Anna P., usa de um recurso interessante para cativar uma plateia acostumada a ver tudo explicitado na internet, em jogos macabros do Playstation, nas decapitações do noticiário, nas crianças dilaceradas por bombas no Oriente Médio.

Esta é a sua linguagem, meu chapa? Você só consegue ler notícias com títulos que apresentem x número de exemplos, tipo: "10 ilhas que você não pode deixar de..."?

Então esta é a história que Anna P. tem a lhe contar. Seca, realista, ora super tesuda, ora triste com uma ponta de arrependimento. Pega aqui, põe ali e, opa, vamos gozar. Simples assim. SQN?

Ela parece dizer que sexo não é feito para ser tratado no plano racional. Mas, já que vocês querem, e eu tenho necessidade de desabafar, lá vai. Tome aqui um murro na sua cara. E tome e tome.

Como leitora, aceitei o desafio. A coleção é editada com visível carinho por professores da USP que evidentemente se interessam mais por conhecimento do que por mazelas da burocracia acadêmica.

Há resumos sobre os autores, introdução para situar historicamente, prefácio e posfácio, bibliografia, tudo tratado com o devido esmero, uma fineza de dar gosto.

É o tipo de livro que dá vontade de morder. Objeto maneiro. Tanto trabalho por que, para quem?

A intenção dos acadêmicos envolvidos no projeto está resumida na frase do posfácio de um dos livros, escrito pelo tradutor Guilherme da Silva Braga: "Por que ler hoje um romance pornográfico do século 19? A resposta pode ser mais simples do que parece: é que o sexo, como a boa literatura, não envelhece nunca".


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