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Humor negro à mostra

Comédia excêntrica de Bruno Dumont é destaque no festival de cinema de SP

LUCAS NEVES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS

Se o anúncio de que a série de TV cult "Twin Peaks" terá uma continuação em 2016 deixou o séquito de David Lynch salivando, não será preciso esperar até lá para saciar o apetite por intrigas policiais em que o clima estranho anda de mãos dadas com um humor excêntrico.

A iguaria, francesa, se chama "O Pequeno Quinquin" e figura no cardápio da 38ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa nesta quinta (16).

Criação do "chef" Bruno Dumont, 56, com três horas e 20 minutos, foi exibida pela primeira vez em maio na Quinzena dos Realizadores, seção paralela do Festival de Cannes. A estreia para o grande público se deu sob o formato de minissérie de TV, em setembro.

Nesse mês, a revista "Cahiers du Cinéma" estampou o título "A Bomba Pequeno Quinquin" em sua capa. Em editorial, louvou o "filme mais engraçado em anos", "um gesto radical, definitivo", o "provável melhor do ano".

Passemos à receita, pois. Num vilarejo litorâneo do norte da França, cadáveres de vacas são descobertos à beira-mar e em um bunker abandonado da Segunda Guerra. Dentro dos animais, há corpos humanos esquartejados.

Para elucidar os crimes, escala-se o comandante Van der Weyden, gauche incorrigível, desde o repertório sortido de tiques faciais até a linguagem corporal clownesca, passando pelos engasgos da fala --em suma, uma trombada entre o Agente 86 e o Inspetor Clouseau. Já os espasmos de Carpentier, seu assistente, são de ordem filosófica: de onde vem tanto horror?

Observador xereta, o Pequeno Quinquin do título oferece menos uma resposta a essa pergunta do que a certeza de sua perenidade.

É ele, afinal, o líder da gangue mirim que persegue os filhos de imigrantes recém-chegados e atormenta meio mundo com amplo arsenal de bombinhas. Longe dos asseclas, no entanto, é só ternura com a namoradinha e a família.

PRIMEIRA COMÉDIA

Dumont, um dos "protégés" da crítica local na geração revelada nos anos 1990 (e duas vezes vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes, por "A Humanidade" e "Flandres"), dá agora os primeiros passos na comédia. Seus dramas eram até aqui associados a austeridade, ascetismo e formalismo.

"Não se trata de uma mudança de rota" diz o cineasta à Folha, num café de Paris, ao comentar cenas como aquela em que, no funeral da primeira vítima, os padres desatam a rir ao esquecer o texto litúrgico, enquanto o organista toca euforicamente.

"Você cava num lugar e a certo ponto acha algo de novo. O cômico é um afiamento natural do drama. Tragédia e comédia vêm do mesmo molde."

Segundo ele, a dificuldade é que "não há meditação na comédia, o riso deve ser produzido instantaneamente, não é uma promessa, um feitiço que pode agir em retrospecto sobre o espectador, como em muitos de meus filmes".

Apesar da variação de registro, Dumont não abandona a legião de rostos assimétricos, corpos alquebrados e figuras balbuciantes de seu cinema.

"Hollywood dá uma ideia errada da vida, com seus homens fortes e mulheres lindas, com ideais no lugar de pessoas", afirma. "Estou mais do lado da filosofia alemã, dos místicos que renunciaram ao céu para cantar a glória do real."

Para tanto, salvo exceções pontuais, ele costuma trabalhar com elencos amadores.

"O medo deles, os problemas de dicção, os brancos', todos esses incidentes são bem-vindos, porque abrem ao acaso, ao silêncio, o que me agrada. Atores são burgueses. Não tenho a menor vontade de pedir a um sujeito que ganha milhões para interpretar um pobre. Mesmo um grande ator é melhor quando está perto de sua persona real."

METAFÍSICA

Os planos abertos que são uma das linhas de força do cinema de Dumont também comparecem a "Quinquin".

Essas "vastas solidões" são sempre habitadas por um mal-estar difuso, uma sensação de que algo se perdeu no homem, no mundo. Daí os críticos enxergarem na obra dele inclinações metafísicas.

"Sou fisiologista, filmo a realidade. Tenho que achar prédios, trilhas, pessoas, elementos concretos", retruca. "Dito isso, acredito no poder da encenação de transfigurar o real. Mas cabe ao espectador ver isso ou não. Para decolar, é preciso estar no chão."

Em terra firme ou em voos abstratos, o certo é que Dumont seguirá explorando o riso por algum tempo. Ele trabalha numa comédia de época para o cinema, antes de desenvolver novo projeto televisivo que costura música, dança e humor. Uma segunda temporada de "Quinquin" também está nos planos.


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