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Revista Serafina

VIVA BOWIE VIVE

Um dos maiores ídolos do século 20, David Bowie volta à cena com uma megaexposição em Londres, em 2013, enquanto curte a vida em Nova York

IVAN FINOTTI DE NOVA YORK

- Oi, Lorena, diz David.

- Oi, David, responde ela.

David Robert Jones não precisa pedir o almoço no restaurante. Ela sabe o que ele prefere. E começa a cortar duas grossas fatias de um pão italiano feito com erva-doce e cebolas. O fato de que David Jones é o nome real de David Bowie não muda a rotina. Para ela, é David, não importa o sobrenome.

A argentina Lorena Viscio é a gerente do Bottega Falai, simpático café onde se fala mais italiano que inglês, na rua Lafayette, 267, no bairro do Soho, em Manhattan. E é ali, vizinho a seu apartamento de cobertura, que o artista almoça sozinho pelo menos uma vez por semana.

Ex-camaleão do rock, Bowie parece ter cansado de tantas mudanças. Pede sempre a mesma coisa: "sanduíche de presunto" (R$ 20). Não o nosso presunto. O de David é mais refinado, de Parma, cru. E regado a azeite de oliva italiano. "Não pode ser outro", ensina Lorena (cuja música preferida de Bowie é "Space Oddity", de 1969).

- O tempo está bom hoje, não, Lorena?

- Está mesmo, David!

Desde que sentiu o coração doendo em pleno palco, durante um show na Alemanha em 2004, e foi submetido a uma cirurgia de desobstrução de uma artéria, Bowie está praticamente aposentado.

Vez ou outra surgem na internet rumores sobre um câncer, jamais confirmado. Tem feito apenas aparições especiais, mas, aos 65 anos, o inglês está longe de ter perdido a relevância.

Em março, o museu londrino Victoria and Albert abre em parceira com a Gucci uma grande exposição sobre sua carreira chamada "David Bowie Is".

Com acesso inédito aos arquivos pessoais do artista, a equipe do museu selecionou cerca de 300 itens, como roupas, fotografias, desenhos, áudios, instrumentos, letras escritas à mão etc, com uma meta difícil: resumir não apenas a carreira de um dos maiores artistas do século 20 mas também as influências incorporadas -e exercidas- por ele em seus quase 50 anos de palco.

"Nos concentramos em como sua criatividade continua influenciando a cultura contemporânea por meio da música, moda, fotografia, desenho, cinema, teatro e arte", diz a curadora Victoria Broackes (música preferida: "Life on Mars?", 1971).

Mais do que Beatles ou Bob Dylan, Bowie se destacou por fazer algo além de rock. Arquitetava colaborações com designers, fotógrafos e cineastas e devolvia músicas mas também modas (o cabelo vermelho arrepiado em cima e batido do lado), imagens (um raio colorido no rosto) e filmes (vide o longa "O Homem que Caiu na Terra", de Nicolas Roeg, 1976).

Bowie sempre fez arte com artistas e para artistas. Seu visual andrógino, suas referências cultas, suas letras sofisticadas, suas parcerias (com John Lennon, Mick Jagger e Queen, por exemplo), tudo sempre andou junto para fazer dele o ser humano mais "cool" do planeta durante as décadas de 1970 e 1980.

Descobrir Bowie era quase um rito de passagem para quem foi adolescente no último milênio. Gostar de uma ou outra fase definia cada pessoa. Os fãs de "Ashes to Ashes" eram os mais filosóficos, os de Ziggy Stardust se reconheciam na esquisitice, os loucos por "Modern Love" queriam se apaixonar, e os de "Golden Years", talvez só se divertir.

COLABORAÇÕES

A curadora da mostra se orgulha em dizer que inseriu as obras nos contextos históricos em que foram compostas e as relacionou a artistas que o influenciaram, como o cineasta austríaco Fritz Lang (1890-1976) e os americanos Andy Warhol (1928-1987) e Stanley Kubrick (1928-1999).

"Bowie é um personagem incrível para uma mostra porque ele dirige criativamente todos os aspectos de seu trabalho, desde roupas, capas de discos e músicas apresentadas até o merchandising de uma determinada turnê." O material está sendo reunido em Londres, Nova York, Berlim, Tóquio e na Suíça.

O macacão desenhado pelo estilista Freddie Buretti para a turnê do disco "Ziggy

Stardust", em 1972, estará lá. A série de fotografias de Brian Duffy para a capa de "Aladdin Sane" (1973), uma das imagens mais famosas da cultura pop, estará lá. Autorretratos desenhados por ele durante seus anos em Berlim, no fim da década de 1970, estarão lá.

A exposição já causa alvoroço. Logo após o anúncio do evento, há alguns meses, Bowie redigiu uma nota explicando que não participou da escolha dos objetos.

LITERATURA

Na mesma época, foi fotografado em frente ao seu prédio por um jornal inglês, acendendo a questão: "O que ele anda fazendo?" Ele anda frequentando comércios perto de seu apartamento, como o Bottega Falai ou a livraria McNally's Jackson, na rua Prince.

A vendedora da McNally's Fiona Duncan (música preferida: "Queen Bitch", 1971) tem um treco toda vez que ele aparece. "Amo, adoro David Bowie", diz ela, de cabelo curto e visual "bowieano". "Ele compra literatura geral, de vários países", conta.

Na entrada do prédio do cantor, a porteira Norma Serrano repete há anos: "David Bowie? Ele não mora aqui".

"De vez em quando, umas adolescentes chegam chorando, com seus pais, para tirar fotos na frente do prédio. Não sei por que acham que ele mora aqui...", diz a fiel Norma (música preferida: "Let's Dance", 1983).

- Um macchiato, por favor, Lorena?

- Claro, David.

Quando almoça na Bottega, Bowie não toma as águas italianas mantidas a 7°C na geladeira do local. Bebe apenas um macchiato, café com espuma de leite. Ao fim, leva para o apartamento -onde mora com a mulher, a ex-modelo somali Iman, 57, e a filha de 12 anos do casal, Alexandria- uma das belas sfogliatelle da casa, tortas folhadas que podem vir com várias coberturas:

a) morango com creme de amêndoas

b) mirtilo

c) maçã

e a sua preferida: d) peras cozidas cobertas por fios de chocolate.

Pode se dividir os roqueiros da Terra em dois tipos de artista. Aqueles com características intrínsecas, que jamais mudam (como Bruce Springsteen, sempre com suas músicas de protesto e camisas de lenhador, com a mesma banda), e aqueles que não se fixam em uma base, mudando ao longo da carreira e se reinventando.

David Bowie é desse segundo tipo e, mais do que isso, é o artista cuja história se confundiu com esse rótulo, ganhando logo no início o aposto de "camaleão do rock".

Ele nasceu em Londres, em janeiro de 1947, e começou a formar grupos de rock aos 15 anos. Na escola, estudou artes visuais e design, além de música, e lançou seu primeiro compacto em 1964, sob o nome Davie Jones, com a banda The King Bees.

Ganhou notoriedade em 1969, com a música "Space Oddity", baseada no filme "2001 - Uma Odisseia no Espaço" (1968), de Stanley Kubrick. Lançada no mesmo mês em que o homem chegou à Lua, tornou-se referência histórica ao ser usada nos telejornais da rede pública inglesa BBC que tratavam do pouso lunar.

A maioria de suas canções à época, entretanto, era péssima, e Bowie parecia fadado a ser um artista de um hit só. Mas melhorou: em 1971, lançou "Hunk Dory", com dois singles que marcaram época, "Changes" e "Life on Mars?".

No ano seguinte, alcançou sucesso mundial ao escrever "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars". Álbum conceitual que conta uma história através das canções, mesclava rocks com baladas ("Starman") e o transformou em objeto de um dos grandes cultos da cultura pop.

Era uma coisa inédita: Bowie não era mais Bowie, mas sim o alienígena Ziggy Stardust, que veio à Terra com sua banda de marcianos (os "spiders from Mars") para salvá-la com rock.

Seus fãs começaram a seguir os shows fantasiados com meia arrastão no torso, cabelos vermelhos arrepiados e botas de plataforma.

Ziggy marcou o início de uma série de personagens que o cantor incorporaria durante a carreira (leia nas páginas 60 e 61). Mestre do marketing, matou esse primeiro alter ego já no ano seguinte, em vez de deixá-lo definhar com o desinteresse do público. Despediu as aranhas e virou a página.

MONTANHAS

Bowie também passa temporadas nas montanhas Catskill, a duas horas de Nova York, no norte do Estado. Ali, ao lado da mítica Woodstock, onde em 1967 aconteceu o festival mais famoso da história, o artista comprou uma propriedade na colina Little Tonche.

É fácil entender por que um artista como ele gosta da região. Além dos bosques e lagos, é mais fácil encontrar Bowie em pessoa ali do que um de seus fãs. A mocinha que serve café na padaria Bread Alone da rodovia 28 nem reconhece o nome do artista. Seus ídolos estão na parada country.

Bowie e Iman frequentam a academia de ginástica cinco quilômetros à leste da padaria. Chama-se 28 West Gym e é um espaço humilde. Iman causa estranhamento quando chega com um personal trainer só para ela.

Há alguns meses, um rapaz levantava uma barra com pesos quando um senhor magro o interrompeu. "Não é assim, você está fazendo errado. Veja." Sentou-se ao lado e mostrou a forma correta. Era Bowie, o professor de ginástica.

No Soho, o dono da Bottega Falai, o italiano Danilo Durante (música preferida:

"Heroes", 1977), sorri de orelha a orelha. "Ele é um cavalheiro inglês, um 'gentleman'", diz o "restaurateur", que usa anéis de caveira, mas nunca ousou dizer nada além de "bom dia" ao astro.

É porque Danilo sabe que o que importa a Bowie ali, mais do que um sanduíche e um café, é a liberdade de viver como um homem comum. Ilusão que Lorena logo trata de destruir:

- Ei, David, que tal colocarmos o nome de uma de suas músicas no sanduíche de presunto?

Desta vez, ele não responde. Sorri para ela, coloca o chapéu e ganha elegantemente as ruas do Soho.


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