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Jornalista relembra sua trajetória de vício

Na autobiografia 'A Noite da Arma', David Carr, do 'New York Times', faz extensa pesquisa sobre sua época 'zumbi'

Livro aborda tráfico, prisão e tratamentos de desintoxicação, além de mostrar como funciona a economia da droga

RAUL JUSTE LORES DE NOVA YORK

"Ao visitar a cracolândia em São Paulo, eu me reconheci em muitos daqueles zumbis. Eu já fui um morto-vivo assim, igualzinho."

O americano David Carr, 56 anos, aparentando muitos mais, é um dos jornalistas mais premiados e conhecidos do jornal "The New York Times".

Ele roubou a cena no documentário sobre o veículo, "Page One", e esteve no ano passado em São Paulo para um evento sobre mídia. Mas só recentemente chega ao Brasil sua autobiografia, "A Noite da Arma", lançada em 2008 nos Estados Unidos.

Depois de mais de dez anos de consumo de cocaína e dois de uso intensivo de crack, David Carr decidiu não confiar simplesmente na memória para escrever sua história.

Tratando a própria trajetória de vício, tráfico, prisões e cinco tratamentos de desintoxicação como uma grande reportagem, decidiu fazer 60 entrevistas e consultar dezenas de relatórios médicos e policiais para checar o que lembrava dos eventos.

Parentes, amigos de vício, traficantes, ex-mulheres e colegas de trabalho foram ouvidos durante três anos de pesquisa.

Ele admite que o retrato pintado pelas testemunhas é bastante mais sombrio do que supunha.

Das namoradas que lhe contam os casos de agressão e maus-tratos aos amigos que lembram episódios que Carr imaginava serem opostos -como no dia em que teria sido ameaçado com uma pistola por um amigo. Na verdade, era ele quem brandia a arma, que dá nome ao livro, contra um de seus melhores amigos.

"Às vezes, eu me defino como um cara superlegal e minha mulher retruca dizendo que eu sou OK, moderadamente legal, mas não superlegal como acho que sou", brinca, enquanto come um hambúrguer no térreo da moderníssima sede do jornal.

A memória pessoal e a traçada pelos interlocutores são elegantemente apresentadas quase em sequência no livro, que traz desde um "breve tutorial sobre o crack" a cópias de diagnósticos médicos que revelam o arrogância do paciente internado várias vezes.

DESINTOXICAÇÃO

Em 1989, Carr começou seu bem-sucedido e longo processo de desintoxicação.

Contra todos os prognósticos, ele pôde criar sozinho as duas filhas gêmeas que teve com Anna, namorada que se viciou nas drogas que traficava. Anna o acusou de roubar os bebês; ele ganhou a custódia das meninas na Justiça.

As gêmeas nasceram prematuras, aos sete meses. Pai e mãe estavam consumindo crack às vésperas do nascimento, em abril de 1988.

Já em 1990, tentou oferecer como reportagem seu relato em primeira pessoa de ex-viciado curado para revistas como "New Yorker", "Esquire" e "Playboy", oferta repetidamente rejeitada.

"Quis contar minha história por razões financeiras, intelectuais e artísticas. Acho que fiz um bom livro", explica o jornalista.

Carr descreve as temporadas em que traficou cocaína para financiar seu vício.

"Todo mundo trabalha para alguém. A prostituta ou trabalha para o cafetão ou para seu filho de dois anos. A stripper trabalha para o traficante ou para o namorado sacana", diz.

"E quanto mais eu me aprofundava na economia da droga, mais eu descobria que todos trabalhavam para alguém. Provavelmente, todos estávamos trabalhando nessa época para Pablo Escobar, de um jeito ou de outro. E ele provavelmente respondia a alguém também", escreve ele no livro.

A quantidade de livros de memórias de ex-viciados já é um subgênero especial das autobiografias americanas. Carr conta que resenhou "Retrato de um Viciado Quando Jovem", de Bill Clegg, para o "New York Times"; e que leu "Correndo com Tesouras", de Augusten Burroughs.

"Meu livro não vai mudar a história, como 'A Sangue Frio', do Truman Capote, mas acrescentou algo a um gênero", diz, assumindo a influência do novo jornalismo.

"Fazer reportagem pode ser antipático independentemente de quem faz as perguntas sobre o quê, mas isso era pior porque o repórter queria fazer perguntas profundas e investigativas sobre si mesmo", conta.

INTERNAÇÃO

Apesar de demonstrar desconforto ao falar de políticas públicas, ele diz apoiar a internação compulsória de viciados em crack. "É a única maneira de fazê-los se lembrarem, por um instante, das pessoas que já foram, de quem são e poderiam voltar a ser. Sem isso, continuarão a ser zumbis."

Credita a sua própria reabilitação à "generosidade" do governo americano, "que pagou meus tratamentos, minhas internações, os remédios que tomei. Foi um bom investimento, acho, pelo que já retribuí na última década em impostos", diz.

Em tempos de legalização do "uso recreativo da maconha" no Colorado e no Estado de Washington, Carr diz não saber se é "certo" liberar a maconha.

"Já vi muita gente desperdiçando o dia inteiro", diz. "Mas a porta de entrada para as drogas é isto aqui", diz, e mostra um maço de cigarros, vendidos legalmente.

O autor ainda enfrentou um câncer, se casou novamente e teve uma terceira filha. Hoje, os cinco moram em um subúrbio em Nova Jersey.

"Agora eu vivo uma vida que não mereço, mas todos nós caminhamos nesta terra pensando que somos fraudes. O jeito é ser agradecido."


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