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Imaginação - Prosa, poesia e tradução

Uma coisa biológica nojenta

FELIPE SANT'ANGELO

ESTOU TRABALHANDO e o telefone toca. Minha esposa me conta que nossa filha entrou em trabalho de parto. (Eu, assim como meus pais e o resto das pessoas, casei e tive minha filha por falta de coisa melhor para fazer. Não que eu não tenha procurado. Mas, é que não existe nada melhor para fazer mesmo. A vida é simplesmente chata, por mais coisa que você invente. Drogas, filmes, livros, palavras cruzadas, casamento, família. Mesmo assim, o tempo sobra. Só um imbecil pra dizer que a vida é curta. "Carpe diem" é papinho de poeta tuberculoso e de malandro no Carnaval. Vida curta só têm aqueles que morrem no parto. "Curta" não é a melhor palavra. Melhor é "ideal". Pois é isso o que eles têm: uma vida ideal. Só ficam com a parte boa, boiando no líquido amniótico, um caldo nutritivo e quentinho. Depois, morrem, e nem devem perceber.)

Recolho as minhas coisas em questão de segundos e entro no carro. Tomara que seja um parto problemático, cheio de complicações, e que eu falte no trabalho pelo resto da semana. Vou adorar ficar andando de um lado para o outro no hospital, pegando refrigerantes e salgadinhos naquelas máquinas automáticas, comendo porcarias, sem me preocupar com hora do almoço, hora do jantar. Ao meu redor, pessoas chorando.

Adoro ver as pessoas chorando. Talvez porque eu nunca chore. Se chorei bebê, pouco importa. Sei que, desde que me lembro, jamais verti uma lágrima de emoção. Então ver uma pessoa assim me fascina. A pessoa se debatendo, se torturando, sem compreender a razão, apenas sofrendo. Um estado pleno. Não há o que compreender.

Chego no hospital. Minha esposa olha para mim. Ela deve estar pensando se me abraça ou não. Sabe que não gosto de demonstrações públicas de afeto. Não por serem demonstrações públicas, mas pelo afeto. Não gosto de afeto. Não me afeto.

Salas de espera de hospital estão entre meus lugares favoritos no mundo. Junto com quartos de hotel. De quarto de hotel eu gosto porque não é a minha casa. E eu odeio a minha casa. Também porque entro em quartos de hotel raramente, apenas em viagens ou quando estou traindo a minha esposa. Faço isso raramente porque sai muito caro. Viajar e trair.

Na TV, alguma novela qualquer. Reprise. Mas, meus pensamentos são bem mais melodramáticos. Fantasio com a hipotética decisão: "Só poderemos salvar um dos dois. Quem vocês preferem: o filho ou a mãe?". Uma pena nunca terem feito essa pergunta para mim. Eu sempre escolheria o filho. A mãe poderia engravidar de novo e superar o trauma. O filho, não: seria sempre o culpado da morte de sua mãe. Um assassino.

Caminho perigoso esse que estou tomando. Falar tantas barbaridades, destruir sem construir. Não quero, com isso, perder sua simpatia, ó, leitor. Por isso, vou aqui dizer um fato positivo sobre mim: sou doador de órgãos.

Sim! Quero doar tudo: olhos, língua, orelhas, nariz, intestinos, rins, coração, mamilos, ossos, sangue, tudo. Tudo mesmo. Minha intenção é no velório ser apenas uma pele murcha, vazia e fétida, para as pessoas contemplarem.

Isso posto, permito-me voltar a meu breve e digressivo relato. Minha esposa vem em minha direção. Há apreensão em seu olhar, torço por más notícias.

-- A Débora quer que você esteja lá durante o parto.

Quando nossa filha nasceu, minha mulher quis saber que nome eu gostaria de dar pra ela. Mas, fui indiferente. Dane-se o nome! (Aliás, não me apresentei: meu nome é Rocha. Orlando Rocha.) Ela perguntou se eu gostava de "Débora". Uma das garotas mais cretinas do meu colégio se chamava Débora. Tinha fama de punheteira. Mais tarde, tornou-se uma religiosa perturbada. (Se bem que religiosa perturbada é redundante... "Tornou-se religiosa" já diz tudo.) Mesmo assim, não me opus ao nome. E minha filha tornou-se uma débora.

Quando entro na sala cirúrgica, minha filha morde um pano, de pernas abertas. O bebê parece estar a caminho. O médico pede que ela faça força. Sangue, tripas. Mais força. Além de tudo que sai pela vagina, há muita merda sendo expelida pela via anal. Detalhe tão sórdido quanto óbvio. A mulher faz uma força tremenda, é claro que ela se caga, se mija. Mas, ninguém nunca fala disso. As pessoas quando falam do parto tentam omitir o óbvio: a vida é uma coisa biológica nojenta.

Vem um bebê. Vermelho, gosmento, mole. O médico não precisa bater em sua bunda. Ele já chega chorando. Merda de vida.

Minha filha, com lágrimas nos olhos, pega a criança no colo, e pede que eu me aproxime. Fala qualquer coisa comigo. Está com um hálito terrível. Mal ouço o que ela está dizendo, quero sair desse quarto.

Olho para a porta. Ela coloca seu filho diante de mim. Quer que eu segure o bebê. Por quê? Eu não sou o pai desse merda! Não há como evitar. Seguro-o. Meu avental fica sujo de sangue. Seus olhos estão fechados, sua testa espremida. Ele está quente e chora desesperado. Minhas pernas estão bambas. O que está acontecendo comigo? Meu corpo entra em espasmos. Tento falar, mas o ar me falta. O choro vem, soberano, e me domina. Não há o que compreender.


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