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Arquivo aberto - Memórias que viram histórias

O perdão de Susan Sontag

Nova York, 1992

MARCIA FORTES

Quando recebi a confirmação por fax fiquei hiperexcitada. Eu entrevistaria ninguém menos que Susan Sontag (1933-2004) e precisava compartilhar esse trunfo no "escritório", como costumávamos chamar o bar da Lucy na avenida A.

Levei a lista de perguntas formuladas pela editora e por mim para a turminha de artistas e intelectuais aspirantes que marcava ponto ali. Varamos madrugada debatendo os signos de Saturno, as metáforas da Aids, as notas sobre estilo e, claro, a próxima música no jukebox.

Não me lembro, mas provavelmente fechei o bar. Era 1992, eu era correspondente cultural do "Jornal do Brasil", crítica incipiente do circuito das artes plásticas do Soho e boêmia profissional do East Village nova-iorquino.

Não é que eu tenha acordado de ressaca; eu ainda estava bêbada quando levantei num salto às 11h no dia seguinte. Agarrei gravador e bloquinho e saí correndo escada abaixo. Fui xingando a mim mesma pela rua enquanto cruzava para o outro lado da ilha.

A entrevista estava marcada para as 10h. Era quase meio-dia quando toquei a campainha da cobertura no West Side. A própria Sontag abriu a porta. Deve ter sentido o cheiro de álcool exalado do meu suor frio. "Está muito atrasada e não tenho mais tempo para você", disse, batendo a porta.

Toquei a campainha uma, duas, não sei quantas vezes. Ela voltou, me olhando com escárnio: "Você está me perturbando". Segurei a porta e desandei a falar. "Meu atraso é injustificável, sou uma jovem irresponsável, me perdoe, quero muito entrevistá-la, 1 milhão de leitores lerá suas palavras no jornal de domingo no Rio, o editor aguarda com uma página inteira em branco, por favor me receba!" Quase chorei. Sontag percebeu o desespero legítimo naquela trovoada de palavras. "Mudei de ideia, pode entrar." Ela sentiu pena de mim. Quase a beijei.

Ficamos no sofá da sala, Manhattan desdobrando-se sob o janelão em frente. Dava pra ver uma parede coberta de livros ao fundo. Senti-me confortável pela primeira vez naquele dia. Foi, no entanto, uma sensação fugaz.

O lançamento do seu romance "O Amante do Vulcão" no Brasil era a pauta da entrevista, mas eu também trazia perguntas sobre sua admirável produção ensaística. Ela se recusava a respondê-las, dizia que estava ali exclusivamente como romancista, que não era mais a crítica dos anos 60 e 70, que essa falação de década era muito barata.

Abriu-se um abismo de intenções naquela sala ampla --ela falando como a ficcionista que acabara de produzir sua melhor obra literária, e eu querendo ressuscitar a ensaísta radical de uma época. Ela estava irascível. Rosnou que não queria ser guia de consumo de uma estética cultural, que aquelas perguntas já não eram relevantes.

Saí da linha novamente. Disse que a entrevista não funcionaria se ela negasse a própria biografia, que com certeza o rigor intelectual dos seus ensaios haviam (in)formado os seus romances, que nada existia em um vácuo, que ela não podia refutar a minha admiração nem a de ninguém, pois ela era responsável pela formação crítica de um mundo de gente.

Quanto dei por mim estava falando na velocidade da luz, comentando como aprendi com seus ensaios que há estilos e estilos e que algo pode ser tão ruim que chega a ser bom, que isso era genial, que mudei minha relação com a arte lendo seu livro "Contra a Interpretação", que ela era a deusa dos "insights" brilhantes!

Ela me interrompeu, "Acho que gosto de você, vamos adiante". Aí a conversa rolou de verdade e me senti realmente bem, pondo à prova toda a filosofia diletante dos meus 25 anos diante do mais elevado intelecto.

E, de repente, a glória máxima: sua companheira de tantos anos, a grande fotógrafa Annie Leibovitz, apareceu na sala com uma bandeja. Tinha vindo nos trazer chá! Ao que Susan Sontag agradeceu com um "Obrigada, querida". Não era mais Sontag: eu estava com Susan, em sua casa!


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