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Tesouro descoberto pode chegar a R$ 3 bi

JEEVAN VASAGAR ELIZABETH PATON TRADUÇÃO CLARA ALLAIN

O advogado alemão Markus Stötzel ficou espantado ao saber que a obra "O Domador de Leões", de Max Beckmann, estava sendo anunciada como um dos destaques de um leilão de arte moderna da casa Lempertz, em Colônia.

Faltavam poucas semanas para a venda da peça em guache e pastel sobre papel. O advogado sabia que a coleção de Alfred Flechtheim --marchand, colecionador e defensor do modernismo alemão perseguido pelos nazistas, cujos herdeiros eram seus clientes-- tinha incluído "O Domador de Leões".

O reaparecimento da pintura oferecia uma chance rara de reparação antes de ela sumir mais uma vez em mãos privadas. O proprietário, Cornelius Gurlitt, um idoso de Munique, admitiu que seu pai comprara a tela de Flechtheim em 1934, numa venda forçada.

"O Domador de Leões" foi arrematada em 2 de dezembro de 2011 por € 720 mil (cerca de R$ 2,2 milhões), e parte do dinheiro foi para os herdeiros de Flecht- heim. Foi uma das últimas vendas feitas por Gurlitt. No dia 28 de fevereiro de 2012, seu apartamento foi invadido e revistado por investigadores e por agentes da Alfândega.

Eles levaram três dias para examinar o tesouro que encontraram: pinturas de Picasso, Renoir e Toulouse-Lautrec, obras até então desconhecidas de Marc Chagall e Otto Dix e trabalhos de artistas que os nazistas tinham vilipendiado --como Beckmann-- numa exposição local de arte degenerada. Algumas das obras eram anteriores ao século 20, sendo uma destas uma gravura em cobre da Crucifixão, de Albrecht Dürer. Havia ao todo 1.406 obras; 121 delas, ainda emolduradas numa estante, como num depósito de museu. As demais ocupavam gavetas.

O tesouro secreto de Gurlitt suscitou, além de assombro, controvérsia. Pelos princípios (aceitos pela Alemanha) da conferência sobre arte confiscada pelos nazistas, realizada em 1998 em Washington, todos os esforços devem ser feitos para difundir descobertas como essas, a fim de que sejam localizados os proprietários das obras antes da guerra ou seus herdeiros.

Mas a maior descoberta feita desde a Segunda Guerra de arte confiscada pelos nazistas veio a público somente no último dia 3, quase dois anos após a batida no apartamento, quando foi divulgada pela revista alemã "Focus".

CAUTELA A relutância das autoridades alemãs de levar o assunto a público tem origem numa cultura legal regida pela cautela.

Os promotores se negam até mesmo a identificar Gurlitt, 80, publicamente. Dizem apenas que "uma pessoa se encontra sob investigação por suspeita de sigilo fiscal e apropriação indébita". Segundo o advogado Stötzel, se as autoridades expuserem detalhadamente a coleção, Gurlitt pode mover uma ação contra elas.

Nem todas as obras foram roubadas pelos nazistas. Meike Hoffman, o historiador de arte que está catalogando a descoberta, disse que é preciso mais tempo para verificar a proveniência das peças.

Não é certo que descendentes de judeus alemães venham a ser compensados. Stötzel, que representa cerca de 50 outros querelantes, diz que, embora a Alemanha tenha aceito os princípios de Washington em nome de instituições públicas, proprietários particulares não são obrigados a segui-los.

Após a descoberta, o mundo da arte ficou siderado por duas perguntas: que impacto um influxo repentino de tesouros --a "Focus" estimou seu valor em € 1 bilhão (cerca de R$ 3 bilhões)-- pode ter sobre os preços no mercado de arte? E, no momento em que as famílias se preparam para uma batalha para definir os proprietários de direito das obras, quanto tempo será preciso esperar para que as obras apareçam numa sala de leilões?

Julian Radcliffe, proprietário e presidente do The Art Loss Register, de Londres, um banco de dados internacional de obras de arte roubadas e perdidas, diz que o tesouro encontrado em Munique não terá grande impacto sobre valores no futuro próximo.

"Para começar, nem todos os trabalhos encontrados vão valer preços altíssimos --as avaliações atuais não passam de palpites. E, mais importante, é improvável que muitos cheguem até leilões ou marchands, considerando que haverá décadas de trabalho até as obras passarem às mãos dos que terão direito legal de vendê-las."

Os marchands e as casas de leilão enfrentam grande pressão para determinar a origem das obras que serão vendidas. Uma "mácula" pública pode dificultar a venda de uma tela, mesmo que sua posição legal se resolva e que um herdeiro abra mão de seus direitos.

TRILHA As autoridades alemãs dizem que a trilha que levou à descoberta extraordinária começou às 21h de 22 de setembro de 2010, quando Gurlitt foi sujeito a uma revista de rotina num trem de alta velocidade de Zurique a Munique.

Segundo a "Focus", Gurlitt afirmou que seu destino tinha sido a galeria Kornfeld, em Berna. A revista diz que ele tirou do bolso um envelope contendo 18 cédulas novas de € 500 (cerca de R$ 1.500). A galeria conta que não teve nada a ver com o dinheiro e que sua última transação com Gurlitt foi feita em 1990.

Gurlitt era um homem que não existia. Embora parecesse estar vivendo em Munique, não estava cadastrado ali. Não tinha número de contribuinte alemão, não pagava seguro-saúde e não recebia aposentadoria. Mas seu sobrenome era famoso nos círculos de arte.

"É claro que sabíamos quem era!", diz Karl-Sax Feddersen, da Lempertz. O pai de Gurlitt, Hildebrand, foi um marchand e historiador de arte e promoveu artistas alemães progressistas. Quando os nazistas chegaram ao poder, ele se tornou dos pouquíssimos autorizados a negociar obras modernistas.

As obras modernas na coleção incluem aquelas pelas quais os nazistas nutriam ódio profundo e ideológico; marchands como Flechtheim eram chamados "agentes do bolchevismo cultural". Mas o Reich não era avesso a negociar obras desprezadas.

Pesquisadores do Projeto de Restituição de Arte do Holocausto encontraram evidências de que algumas das obras de arte que pertenceram a Gurlitt, pai, estiveram em poder dos Aliados após a guerra e foram devolvidas a ele em 1950. Elas vieram a formar o núcleo de uma coleção vasta e oculta herdada por seu filho. A lista de 115 pinturas apreendidas e depois devolvidas inclui "O Domador de Leões".

Feddersen descreve "O Domador de Leões" como "maravilhosa". Na ocasião, curioso, ele perguntou se Gurlitt teria outros trabalhos para vender. "Ele não respondeu", lembra Feddersen.


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