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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

A caça e o caçador

SJÓN TRADUÇÃO LUCIANO DUTRA

9 a 11 de janeiro de 1883

De tão parecidas, uma raposa-do-ártico e uma pedra confundem-se de forma assombrosa, e quando uma delas posta-se sobre uma rocha, num desses dias de inverno, é um caso perdido tentar distinguir uma da outra. Por isso ela é mais difícil que a raposa branca, que se converte em nódoa negra ou amarela sobre a neve.

A raposa cola como um raio em sua pedra, e deixa o flanco aberto para a rajada de neve. Ela se encolhe toda, enfiando o focinho entre as patas e expondo o traseiro ao vento. Depois, volta a erguer as pálpebras, ajustando o foco para poder ficar de olho no sujeito, que está lá parado feito pedra, coberto pela neve, no ponto mais alto do Rincão dos Ásios. Já faz umas oito horas que ele está lá, sob vento e neve constantes. Parece mais um farrapo do que um sujeito.

E o animal tem de fazer um esforço enorme para lembrar que ali vai um caçador.

A perseguição tivera início lá pelas bandas do Remanso Sul. O céu estava límpido, e a aurora escura como nas piores noites de inverno. O sujeito desceu até o prado, rumo do norte, passando pelo Rincão dos Ásios, na direção da Penha Menor, único lugar onde a neve ainda não havia se acumulado.

Lá chegando, logo percebeu um movimento na margem oposta do rio. Precavido, ele procurou o binóculo e, abrindo-o, deu uma boa olhada.

-- Sim, eu sabia que estavas por aqui!

Uma das criaturas do demo andava mesmo por ali.

Ela parecia totalmente alheia ao perigo. Seus movimentos denunciavam estar em busca de algo para aplacar a fome. O aspecto calmo era sinal de que este era o único foco de seus sentidos, o resto não existia.

O sujeito deu mais uma boa olhada nela.

Concentrou todos os seus pensamentos nela, na tentativa de ter uma melhor percepção de suas intenções. Que direção ela tomaria quando desse por encerrada sua busca por comida lá em cima? Do nada, ela partiu em disparada, sem que o sujeito tivesse a mínima ideia do porquê. Seu comportamento, porém, indicava que ela pressentira um grande perigo. Mas como, se, pelos meios normais, ela não podia ter a mínima ideia da presença dele?

A única explicação plausível é que ela tenha intuído o que ele pretendia fazer:

-- Ali vai um caçador!

O sujeito galgou a colina, tentando memorizar melhor a imagem da raposa, a fim de conseguir encontrá-la com mais facilidade depois:

-- Ela voa como louca sobre a neve! -- pensou.

Ao chegar à margem oposta, ele observou as marcas deixadas pela raposa. Tomou a medida da pegada vulpina entre o polegar e o indicador.

-- O bicho é dos grandes!

Nos flocos de neve grudados na ponta de seu dedo, ele viu um pelo que brilhava, mas não tanto a ponto de dissimular sua cor:

-- E castanho!

Nuvens densas à oeste. Quiçá um temporal chegando? E da raposa, nem cheiro.

O caminho estava limpo até onde a vista alcançava.

Com vento no lombo, o sujeito avançava ligeiro. Que a raposa o farejasse já pouco importava--ela sabia que ele vinha em seu encalço.

Ele parava de quando em quando, espreitando em volta. A técnica era sempre a mesma: usava toda a sua capacidade mental para antecipar a trajetória que a raposa iria percorrer e escolhia uma posição a partir da qual ela ficasse totalmente à sua mercê.

De repente, era como se alguém lhe soprasse o caminho que a raposa percorreria e a exata posição a partir da qual ela ficaria totalmente à mercê dele:

-- Ela vai para o norte, depois virará como um raio para o leste, buscando a Estância das Coxilhas, lá onde tudo são pedras. Melhor refúgio para uma raposa-do-ártico não há.

Estaria o pensamento dela tão ocupado com o perigo a ponto de ela baixar a guarda, abrindo o flanco aberto para que ele compreendesse as suas intenções? Será que ela havia negligenciado a tarefa de despistá-lo?

Ou será que houve transmissão de pensamento entre a caça e o caçador?

Nas coxilhas, tudo era calma e gelo. Uma brisa ligeira mal acariciava as bochechas. O sujeito avistou ao longe um montículo pardo na direção norte. Ficou em silêncio. Não tardou até que o montículo começasse a se mover. E então uma raposa-do-ártico surgiu entre as rochas.

-- Eu sabia, lá vai ela!

E que bela raposa era aquela. Cor de terra, bem peluda e rabuda, ela largou em disparada, claramente acuada, dando saltos elásticos e certeiros.

O sujeito saiu no encalço dela.

E tudo se deu exatamente como ele previra. A raposa meteu-se no olho do turbilhão de neve e, no exato momento em que seria engolida pela nevasca, ela parou de repente e olhou na direção do sujeito.

E então disparou outra vez, como um foguete.


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