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Crítica

Era pouco e se acabou

Estreia literária invulgar, "Anel de Vidro" quebra os quadros da rotina amorosa

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO

RESUMO O primeiro romance da designer e editora Ana Luisa Escorel diverge do panorama da literatura brasileira contemporânea. Retrato mordaz e desencantado do casamento, "Anel de Vidro" prima pelo temperamento analítico e passa ao largo tanto da predominância do gênero policial quanto da tradição regionalista.

A autora de "Anel de Vidro" [Ouro sobre Azul, R$ 34, 192 págs.] estreou nas letras há pouco, com suas memórias intituladas "O Pai, a Mãe e a Filha" [R$ 35, 288 págs.], publicada pela mesma editora. Atinha-se à primeira infância, perquirindo os figurantes, as paisagens, os cenários, as travessuras --mas invariavelmente mediante uma observação arguta, até inclemente, não perdoando nada nem aos adultos nem a si mesma ainda menina.

Todavia, Ana Luisa Escorel não começou propriamente aí: designer gráfica de profissão, já tinha escrito dois livros na especialidade, "Brochura Brasileira: Objeto sem Projeto" [José Olympio, esgotado] e "O Efeito Multiplicador do Design" [Senac, R$ 67,90, 120 págs.].

Foi só mais tarde que o bicho das letras a picou. Em 2004, num lance que tanto tem da afoiteza quanto do milagre, fundou sozinha a pequena editora Ouro sobre Azul, ora em franco florescimento. Nos seus livros sobressai a mão da designer, pelo apuro da produção, pelo gosto impecável, pela seriedade na pesquisa das ilustrações.

Seu temperamento de escritora pende para o analítico, o que já era de notar nas memórias mas se acentua neste romance. Nele estamos às voltas com uma prospecção, desencantada e lúcida, tendo por alvo a descartabilidade do casamento. Já se vê que o título é mais do que pertinente.

A matéria se organiza conforme uma divisão em quatro partes. Abordando o histórico de dois casais em arranjos e permutações, cada uma das partes é dedicada a um dos envolvidos. O narrador, que fica de fora, maneja uma terceira pessoa o mais rente possível ao protagonista de cada uma delas.

Ao contrário do que poderia parecer, as partes não se tornam independentes ou estanques: a mão firme de quem escreve dá conta de tratar de quatro diferentes personalidades, duas mulheres e dois homens, dando-lhes caráter próprio enquanto seu estilo unifica o conjunto. Tudo isso resulta na progressão temporal do entrecho, que vai entrelaçando com cuidado os fios soltos da trama.

MORDAZES Assim, temos um romance não naturalista, que eventualmente efetua mordazes sondagens da categoria "marido", sobretudo ao sul do Equador. O amplo quadro social, embora esboçado com penetração e minúcia, fica em surdina: as alianças desenham uma curva ascendente de classe, ou camada de classe, cada vez mais alta, com seus hábitos de vestir, de falar, de maneiras à mesa.

Por vezes o dedo da designer se entremostra, nas judiciosas observações, pontuais, sobre a paleta de cores das camisas masculinas. Submete-se ao exame o embasamento familiar de cada um, conforme ocupação, setor de classe, origem rural ou urbana, e assim por diante.

O elemento erótico não é negado, muito pelo contrário. Mas, diferentemente do que está em voga, com sutileza e recusa da descrição nua e crua, por isso ganhando em força. Fazem-se presentes os meneios da sedução, o aleatório do desejo e o império que exerce, bem como o abandono a seu jugo.

A inclinação da autora é para a análise. O interesse do narrador reside menos nas agruras matrimoniais (não há cenas de briga) do que na verrumação do lento desgaste do pacto que une um casal e daquilo que as pessoas buscam ao substituir um parceiro por outro. No processo, as lentes de um humor tendendo ao ácido tudo permeiam.

Sendo assim, a narrativa torna-se menos épica que reflexiva, o temperamento da autora levando-a a meditar sobre o fenômeno, sem a preocupação de fazer o registro miúdo de incidentes e caracteres. Isso é reafirmado pela elisão de nomes próprios, razão social de empresas e topônimos: mesmo as cidades são situadas uma de cada lado da baía, porém mantendo o anonimato.

O leitor que esteja precavido da dissecação que esta narradora isenta, desapaixonada, vai levando avante com o gume de seu bisturi, porque não sairá da leitura sem alguma ferrotoada.

Indo por esse caminho, a narrativa vai destoar e divergir do panorama da ficção brasileira contemporânea. Não trata do ego nem de bandidos, não é centrada na própria pessoa do narrador nem se passa na favela. Por outro lado, não é regionalista nem urbano-brutalista, nem histórico nem pós-moderno.

E essas são as principais linhas de força das narrativas que percorrem a atualidade. Ainda por cima, não empunha o mal-escrever como bandeira, preferindo a elegância de quem domina seu instrumento e tem intimidade com boa literatura.

NEGATIVAS Todas estas negativas vão como que limpando a área e deixando mais cristalino o que pertence a este romance e o torna diferente dos demais.

Vejamos por quê. Nada tendo a ver nem com Jorge Amado nem com Rubem Fonseca, como já percebemos, parece laborar numa senda original em nossas letras, ao eleger o bem-escrito e o meditado. Sua escolha do institucional --e que instituição-- também costuma aparecer como crônica à moda de Nelson Rodrigues, o que aqui não poderia ser menos compatível.

Como ninguém ignora, nossa ficção por meio século se ateve aos ditames do regionalismo do Romance de 30. A linguagem crua e coloquial falava de coronéis e retirantes, de lutas pela posse da terra, da paisagem árida do sertão ou da mesquinharia cotidiana nos vilarejos.

Sua relevância não admite controvérsia, pois foi assim que os diferentes quadrantes de um país de dimensões continentais entraram para a literatura, com cenários próprios, galeria de personagens e linguajar diversificado, expandindo o âmbito da "última flor do Lácio".

Aos poucos, juntamente com o movimento que expulsava os pobres do campo e os tangia para a periferia das cidades, até estas resultarem nas megalópoles de hoje, os rumos foram infletindo. Como era de esperar, a certa altura a ficção que chamamos de urbano-brutalista fez-se hegemônica, tornando recessivo o regionalismo.

Essa ficção nova passou a expressar a realidade também nova da vida nas grandes cidades, ponta-de-lança da modernização dos costumes, com a dissolução dos laços comunitários, a acentuação do individualismo, a exclusão de boa parte dos recém-chegados e a exacerbação da violência, agora chamada de violência urbana.

Seu profeta foi Rubem Fonseca e caudalosa a prole que gerou, acabando por reduzir a um fio minguante a produção regionalista.

Dadas essas premissas, não é de espantar que o formato predominante na nova ficção seja alguma variante do romance policial. Atende aos requisitos de privilegiar a ação e desinteressar-se da meditação, mostrando-se receptivo aos efeitos de impacto e choque, tal como no cinema. O valor de entretenimento sobrepõe-se e tende a eliminar o valor de conhecimento e o valor estético da literatura.

Como vimos pela acumulação de negativas, tudo isso passa ao largo de "Anel de Vidro", que nada tem de romance policial. O narrador gosta de pensar, de meditar, de refletir, de argumentar, de ponderar várias hipóteses, de ver para onde vai aquilo que era latente ao eclodir. Até a crueldade usa luvas de pelica.

Dessa maneira, "Anel de Vidro", escolhendo o vínculo mais ou menos duradouro --conforme a perspectiva, mais ou menos volátil-- entre mulheres e homens, na craveira do que há de proteico nesse vínculo, debruça-se sobre suas metamorfoses, flagrando um momento de crise da instituição.

Romance minimalista, é ousado mas sóbrio, fruto da pena de uma autora que não se intimida com facilidade.


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