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Imaginação

PROSA, POESIA e TRADUÇÃO

Camadas de decepção

Um capítulo de "Hosana Poluída"

MARCELO MIRISOLA

O diamante é um dos poucos objetos lapidados pela vontade humana capaz de encerrar-se em si mesmo. Os livros de Camus também. Sem nenhuma jaça. Um octaedro que mostra a mesma face vista de qualquer ângulo, diferente de Ariela: íntegro. Simples, cristalino. O diamante que eu ia dar pra Ariela, tirado do ventre contaminado da terra, que custou o preço do meu grito sabiamente sufocado por 25 anos, e mais a alma do Baduzinho que --no momento em que a biscate me traía-- devia estar crepitando nos quintos dos infernos. Uma pedra linda, perfeita, de quase dois quilates. E agora?

O que eu ia fazer com a merda de diamante?

Olhar pra ele, e olhar pra garrafa de uísque. Confidenciar, ora com um, ora com a outra. Outra vez a solidão como companhia. Uma espécie de sítio arqueológico dentro do meu peito. São várias camadas de decepção. De todos os tipos, feitas de ossos, cacos, durepox e esperança. Desde criancinha fui um solitário.

O engraçado é que vivi várias situações que simulavam uma infinidade de outros sentimentos, menos solidão. Mas era solidão. Quando criança, tinha certeza que o mundo e dona Arlete do apto. 902 compartilhavam do mesmo sentimento --que ela e o zelador do Sanvi Porchat também enxergavam espumas de sangue nas ondas que quebravam mansas na praia de São Vicente. Essas espumas foram as primeiras lembranças que registrei de minha solidão. Depois viriam os losangos do Ilha Porchat Clube. Eu acreditava que meu irmão mais velho era sugado pelos losangos, e lá dentro ele se metia em encrencas com o Valete de Ouros do baralho, enquanto o Rei de Copas me dava guarida do lado de fora, boa gente --El Rei. Tinha certeza que Vinicius de Moraes frequentava o mesmo barbeiro do meu tio Ademar, e que ambos jamais usariam meias. O sapato branco e as canelas nuas dos dois. Era o estilo deles, mas eu não sabia o que era estilo, apenas separava Vinicius e meu tio Ademar dos outros adultos a partir de suas canelas nuas, e eles brincavam comigo. Eu estava sozinho. Ouvia a tonga da mironga do kabuletê numa espécie de walkman interno. Aliás, antecipei várias tecnologias que, logo depois de descobertas, seriam substituídas por outras muito mais eficientes, juro!. Isso em 1972. Era minha solidão. Até hoje, acredito sinceramente que as pessoas ouvem a tonga da mironga em walkmans acoplados diretamente em seus tímpanos e, quando alguém aponta o dedo e me acusa de vaidoso, egocêntrico, umbiguista etc., eu atribuo esse julgamento à surdez interna do infeliz: que nunca vai saber o que é desfrutar da companhia do Vinicius e do tio Ademar em 1972: ambos girando pedrinhas de gelo no blended que é minha memória --feita do mais refinado isolamento. Eu podia citar milhares de exemplos, abrir o peito e desfolhar camadas e camadas de solidão que experimentei ao longo da vida. Tenho sim uma Roma dentro do peito e a lembrança de tia Neném furando meu pescoço com suas garras de harpia... e não se trata apenas de autoengano. Mas da solidão na essência, algo que eu poderia quase chamar de felicidade, apesar da dor.

Tem outro tipo de solidão. Aquela que maltrata, e que não depende apenas da nossa esquisitice, sei lá se eu posso dizer que é a solidão de verdade, mas posso garantir que é uma solidão que não remete a valetes e reis de baralho, ela é crua e óbvia, e cobra o condomínio atrasado; ela é o nosso erro em estado de urgência, um sentimento que jamais vai se misturar a qualquer desejo de abrir uma cachaça de rolha e nem vai admitir o encontro do céu com o mar, essa outra solidão reafirma a acusação e o dedo em riste, faz com que efetivamente nos transformemos em seres vaidosos e egocêntricos. Um caminhão de mudança que leva nossa Roma pro crematório de Vila Alpina: estou falando de uma solidão que é alheia à vocação, uma solidão que não está nem aí para as ruínas que acumulamos dentro do peito, porque é a ruína sobre a ruína, a reforma, aquilo que é prioritário diante da estagnação. A solidão que somente as mulheres são capazes de intentar.

Imediatamente pensei que Ariela seria mais uma ruína a carcomer dentro de mim. Todavia, ela (ou eu mesmo) me surpreendeu.

Dessa vez, confesso que não caí no abismo negro das faltas que ferem feito punhal, nem dos porquês inexplicáveis que fazem a gente emagrecer, escrever romances vingativos e ligar pros amigos de madrugada. Dessa vez, inclusive, poupei os amigos.

Em determinado momento, acreditei que não estava acompanhado da solidão de sempre, a supracitada, aquela que maltrata e que faz a gente confundir o amor perdido com a mulher que caminha desavisadamente do outro lado da calçada, embora eu visse Ariela não só do outro lado da calçada como atrás do balcão da padaria, na caixa do supermercado e no meio dos pesadelos que me acordavam de madrugada para lembrar que eu --outra vez-- era um apaixonado, mas dessa vez não teve a lâmina nem a dor lancinante que cresce feito um punho fechado dentro do esôfago. Ariela pairava, permanecia ao meu lado mas não exatamente como Joana, não, não exatamente. Não era só presença. Era dor também, mas uma dor que, ao invés de me maltratar, me acalmava: imaginei que dessa vez quem me fazia companhia era o amor, o amor que sentia por Ariela, porque somente o amor não se contaminaria ao imiscuir-se com paixão e vaidade, sim, o amor de verdade, que não era apenas abandono e obsessão, e que também não era somente idealização infantil da minha parte, mas um amor que acompanhava a solidão com serenidade. Eu seria capaz de tanto? Ou estaria ficando velho e calejado?

-- Você jamais vai amar alguém na vida.

Praga de cigana?

Não sei, e nem devia ter lembrado da cigana num momento desses. Mas o que posso afirmar, independentemente de ser amor ou paixão --ou a mistura dos dois--, não importa o nome, o que posso afirmar é que, pela primeira vez na vida, tive controle da situação. Eu imaginava que sim, talvez um controle que somente pudesse existir em função de um descontrole absoluto, mas era controle. Era sim. Além disso, uma certa elegância leminskiana. Bem, descontada a poesia, falando assim "eu tinha controle" parece até que guardava uma certa superioridade com relação à novidade que me entorpecia. Não era bem assim. O tal do controle apenas me acalmava quando devia me deixar puto da vida, e eu repudiava muito isso porque --sinceramente-- não fazia a menor questão de conservar distância e muito menos de me tornar elegante diante dos cornos que brotavam da minha testa. Uma bosta de um controle que não me trazia segurança. A verdade é que --mesmo que eu tivesse amando pela primeira vez na vida-- eu continuava infeliz, e travado.

Mas tinha controle, sim, e uma porra de um diamante de quase dois quilates que eu congelei junto aos cubos de gelo, só pra ouvir um barulho muito particular misturado no copo de uísque, um tilintar que me acompanhou ao longo da vida, mistura de memória, dor e entorpecimento.


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