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O longo sopro de Kleist

Um favorito de Kafka dá o ar de sua graça

MARCUS MAZZARI

RESUMO Tradução da novela "Michael Kohlhaas" e reedição de "Sobre o Teatro de Marionetes" recolocam o nome de Heinrich von Kleist (1777-1811) no cenário nacional. Crítico de seus contemporâneos e interlocutor de Goethe, alemão seria admirado por Thomas Mann e por Kafka, autor cujas características por vezes parece antecipar.

Em 1911, cem anos após o suicídio de Heinrich von Kleist (1777-1811), um de seus admiradores escrevia a Max Brod: "Kleist sopra em mim como numa velha bexiga de porco". Como entender a insólita imagem? Sentia-se Franz Kafka prestes a explodir sob o impacto angustiante da escrita kleistiana? Ou procurava metaforizar um "sopro" vivificante e inspirador?

Essa alternativa encontraria mais tarde o respaldo de Thomas Mann, que, num ensaio de 1954, observa que Kleist "sabe enredar-nos em torturas --e fazê-lo de tal modo que lhe agradecemos".

Kafka se abstém de elucidar a metáfora e tampouco menciona o texto que tinha em mãos. Considerando-se, porém, a posterior declaração de que lera "umas dez vezes" "Michael Kohlhaas" [trad. Marcelo Backes, Civilização Brasileira, R$ 35, 176 págs.], é bem possível que se tratasse dessa novela, que ganha edição no Brasil.

Baseada em acontecimento verídico do século 16, a história de Kohlhaas parece antecipar aspectos cruciais do mundo kafkiano.

A caminho de uma feira na Saxônia com uma tropa de cavalos, o herói tem dois belos murzelos apreendidos pelo fidalgo Von Tronka. A arbitrariedade se apoia na suposta exigência de salvo-conduto, até então inexistente, e Kohlhaas se propõe a providenciá-lo em Dresden, deixando seu servo Herse com a incumbência de cuidar dos animais.

Na capital saxã tal exigência se revela infundada e, munido de uma declaração das autoridades, o comerciante de cavalos retorna tempos depois para resgatar os animais. Encontra-os, porém, no mais deplorável estado, consumidos em trabalhos pesados e privados de alimentação e tratos adequados. Quanto a Herse, dizem-lhe que se portara com insolência, tendo sido espancado e enxotado do castelo (chegando a sua propriedade em Brandemburgo, Kohlhaas encontra-o mais morto do que vivo e ouve um horripilante relato dos acontecimentos).

Começa então a demanda de Kohlhaas por justiça, isto é, recobrar os cavalos no estado anterior ao confisco e ressarcimento das despesas médicas de Herse. Recursos junto à corte judicial em Dresden são sabotados por dois altos funcionários aparentados ao fidalgo; sua mulher, Lisbeth, propõe-se, num derradeiro esforço, a levar o caso ao príncipe eleitor de Brandemburgo em Berlim. Na tentativa de aproximar-se deste, é brutalmente golpeada pela escolta e volta para morrer em casa, rodeada pelo marido e os cinco filhos.

Começamos então a entender por que o narrador, abrindo a novela com um paradoxo, caracteriza o herói como "um dos homens mais honestos e ao mesmo tempo mais terríveis de sua época": Kohlhaas vende suas propriedades e decide tomar a justiça nas próprias mãos. Com um punhado de homens armados, destrói o castelo de Von Tronka e massacra a todos. O fidalgo, contudo, logra fugir para Wittenberg, onde pouco depois chega Kohlhaas com um exército cada vez maior para promover terrível devastação.

A violência recrudesce e se torna incontrolável, de tal modo que Lutero, venerado por Kohlhaas, lança uma veemente condenação dos sublevados (fato atestado nas crônicas da época). Abalado, Kohlhaas consegue esgueirar-se até o reformador para se justificar e, se possível, receber a comunhão. Lutero se recusa a absolvê-lo, mas lhe proporciona um salvo-conduto, com a condição de depor as armas, para levar sua causa diretamente ao príncipe eleitor.

Nos desdobramentos do processo, Kohlhaas é extraditado para Brandemburgo, que assoma como bastião da justiça, em oposição à corrupta Saxônia. À rivalidade entre os dois Estados vem sobrepor-se, porém, a ingerência do Sacro Império, ao qual os príncipes se encontravam subordinados. Por ter rompido a ordem social também em domínios do imperador, o herói venerado pelas massas é condenado à decapitação.

Brandemburgo, no entanto, profere sua própria sentença, o que confere à história uma inflexão que a distancia consideravelmente, como perceberá o leitor, do mundo kafkiano.

Embora bem mais extensa do que as demais novelas de Kleist, "Michael Kohlhaas" preserva, em meio à profusão de detalhes históricos e reviravoltas do enredo, o fio narrativo rigorosamente tensionado na direção do desfecho. Na etapa final, todavia, entra em cena um elemento "maravilhoso": a cápsula com a profecia sobre o fim da casa regente saxã, que a cigana Elisabeth entrega a Kohlhaas sob os olhos do príncipe eleitor, tornando-o de certo modo seu refém.

Esse enigmático motivo abre nova perspectiva de leitura, adensando a multiplicidade de sentidos que subjaz à novela. Mas esse é um traço geral das narrativas de Kleist, o que foi demonstrado de maneira exemplar por David Wellbery no volume "Positionen der Literaturwissenschaft" (posições da teoria literária, C.H. Beck, 2008), que enfeixa oito modelos de análise, desenvolvidos por renomados especialistas, à luz da novela "O Terremoto no Chile": da hermenêutica à desconstrução, passando pela teoria da mitologia, semiótica, análise do discurso, teoria crítica e assim por diante.

LEITURAS Esse potencial de abrir-se a diferentes leituras está igualmente presente na narrativa "Sobre o Teatro de Marionetes" [trad. Pedro Süssekind, editora 7Letras, R$ 34, 64 págs.], reeditada recentemente no Brasil.

Vale lembrar como Walter Benjamin, no texto "Elogio da Boneca" ("Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação", coedição ed. 34/Duas Cidades, 2002), discute a visão de que Kleist teria camuflado aqui pensamentos políticos: "Como a marionete é confrontada com o deus, e como o homem, encerrado nos limites da reflexão, vacila impotente entre ambos, tudo isso forma efetivamente uma imagem tão inesquecível que poderia esconder muitos elementos inefáveis".

Contudo, como sugere Benjamin, a incomensurabilidade desse texto parece constituir-se antes no terreno filosófico e estético do que no político (ao contrário de "Michael Kohlhaas"), pois seu eixo temático gira em torno da contraposição entre "graça" (Anmut) e "consciência".

Após encontrar sucessivas vezes um célebre bailarino num teatro de marionetes, o eu-narrador tem oportunidade, numa noite, de indagar-lhe a respeito e fica sabendo que aquele buscava aperfeiçoar sua arte com os títeres. Embora "antigravitacionais", estes executariam seus movimentos a partir do mais exato centro de gravidade, advindo daí o encanto a que bailarinos, guiados pela consciência e reflexão, aspiram debalde.

Mas a relação entre graça e consciência se prismatiza ainda em duas belas histórias entretecidas ao diálogo, a primeira sobre uma cena que, em seu caráter ingênuo (no entanto, logo perdido para sempre), lembra uma célebre estátua da antiguidade, e a segunda sobre um urso imbatível na esgrima (pois movido pela infalibilidade do instinto).

Se a graça que se mostra plenamente na marionete e no ani- mal não é mais acessível ao homem que provou do fruto proibido --especulação decorrente do diálogo-- ela poderá ser reconquistada pelo conhecimento que percorrer o infinito, de modo que um dia os "dois extremos do mundo em forma de anel" se encontrarão.

Entre as várias interpretações que suscitou, "Sobre o Teatro de Marionetes" também foi visto, com sua referência a artistas que por vezes parecem ter a "alma" nas vértebras ou no cotovelo, como sátira velada ao teatro contemporâneo, sobretudo ao célebre diretor e ator A. W. Iffland (1759-1814).

A difícil relação de Kleist com o teatro alemão de seu tempo vem à tona em carta que enviou a Goethe em 24 de janeiro de 1808. Colocando-se, como diz no início da carta, "nos joelhos do meu coração", Kleist envia-lhe o primeiro número da revista "Phöbus" com oito cenas da tragédia "Pentesileia".

"Da maneira como o texto se dispõe aqui, os leitores talvez aceitem as premissas como possíveis e não se assustem depois, quando vier a continuação", diz, ao apresentar o material que enviava.

"A peça está destinada tão pouco ao palco como aquele drama anterior, A Bilha Quebrada', e só posso atribuir à boa vontade de Vossa Excelência em estimular-me o fato de que este seja, não obstante, encenado em Weimar" --Goethe (apesar de restrições às concepções teatrais de Kleist) estava prestes a levar o texto ao teatro da cidade, então sob sua direção.

"Os nossos demais palcos não estão constituídos, nem diante nem atrás dos bastidores, de modo a que eu possa contar com semelhante distinção e por mais que eu queira participar, em todos os sentidos, da vida presente, no caso do teatro tenho de mirar na direção do futuro, pois as considerações e os compromissos seriam demasiado acabrunhantes", concluía Kleist.

Goethe responderia oito dias mais tarde --esta é uma das duas únicas cartas dirigidas a Kleist que chegaram até nós. Na resposta, fria e distanciada, comenta os textos teatrais que recebera: "Com a Pentesileia' eu ainda não consigo simpatizar. Ela é de uma linhagem tão fabulosa e se movimenta numa região tão estranha que preciso de tempo para orientar-me em ambas".

E passa a uma dura observação a respeito da "vida presente": "Permita-me dizer também (pois se não é possível ser sincero, é melhor calar-se de todo) que me é sempre preocupante e consternador ver jovens de talento e espírito esperarem por um teatro que ainda haverá de vir. Um judeu que espera pelo Messias, um cristão pela Nova Jerusalém e um português por D. Sebastião não me causam maior desgosto".

JUBILEU Entre os inúmeros livros sobre Kleist que vieram à luz na Alemanha depois do jubileu de 2011, estão duas alentadas novas biografias, o que indicia o interesse ainda candente por essa existência trágica e "inaudita", como todas suas novelas.

Testemunho da atualidade desse escritor presta também o filme franco-alemão de 2013 baseado em "Michael Kohlhaas", que deve estrear no segundo semestre no país.

Dirigido por Arnaud des Pallières, conterrâneo do autor da adaptação mais celebrada até hoje de Kleist ("A Marquesa d'O", 1976, de Éric Rohmer), o filme opera livremente com vários elementos do enredo, por exemplo substituindo Lutero por um pastor protestante não nomeado (afinal a história é adaptada para as Cevenas, reduto huguenote na França) e ampliando a temática amorosa bem além do que fez o novelista, empenhado em desdobrar a contraposição entre o justo e o legal com máximo rigor e objetividade, por meio de procedimentos épicos que, como já foi observado, viram as costas para o leitor.

É também com alguma liberdade que opera o tradutor da edição brasileira de "Michael Kohlhaas".

Quanto a essa questão, caberia observar que um ou outro leitor poderá estranhar a escolha de Marcelo Backes por termos que, em português, traem uma coloquialidade talvez excessiva.

São exemplos: "coisas enroladas demais", "encafifado", "né" --ou "tirar água do joelho", expressão de informalidade jocosa (e moderna) que não corresponde bem ao antigo original alemão "sein Wasser abschlagen". Mas é uma opção a ser respeitada, sobretudo vinda de um tradutor que encontra correspondentes adequados para tantos outros termos jurídicos e administrativos do século 16.

Vale frisar ainda que o glossário e o posfácio que acompanham a tradução oferecem ao leitor valiosos subsídios para adensar a fruição desse extraordinário texto da literatura mundial.


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