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História

Um gigante modesto

A obra de Le Goff nos ergue a grandes alturas

RESUMO Ex-aluno recorda personalidade e trajetória do historiador francês morto na terça, aos 90. Estudioso defendeu e cunhou uma historiografia mais integrada às outras ciências sociais e, apesar das limitações de saúde que o impediam de sair de casa, continuou produzindo obras que abrem novos caminhos para reflexão.

HILÁRIO FRANCO JÚNIOR

ALÉM DE LEMBRANÇAS pessoais, uma das primeiras coisas que me vêm à mente com a morte do historiador francês Jacques Le Goff, no último dia 1º, é sua postura contrastante com a de muitos produtores culturais de hoje em dia.

Enquanto o sucesso comercial e mediático de um único livro, disco ou filme, com frequência inversamente proporcional à qualidade da obra, faz seu autor se comportar como prima-dona, Le Goff distinguia-se pela sincera modéstia e pela simplicidade natural. Gostava de falar tanto sobre o livro que então escrevia como do trabalho em andamento do seu interlocutor. Apreciava conversar sobre os conhecidos comuns, futebol, política, séries policiais na televisão.

Contudo, pelos critérios dos falsos diamantes, não lhe faltariam motivos para vaidade. Publicou mais de 30 livros, louvados pela crítica especializada e pelo público, que receberam traduções em 14 idiomas. Foi convidado e homenageado por dezenas de universidades. Recebeu os mais importantes prêmios da sua área de atuação. Se suas qualidades de caráter ficavam forçosamente restritas a um círculo pessoal e profissional mais próximo, as qualidades intelectuais eram patentes a todos.

O reconhecimento em vida prolongou-se logo que seu desaparecimento foi tornado público. O "Monde" saudou "o maior medievalista francês"; "Le Figaro", o "medievalista de autoridade mundial"; o "Libération", o "monumento histórico"; "Le Nouvel Observateur", "este grande historiador que o mundo nos invejava"; o presidente François Hollande, o "grande historiador"; o historiador e editor Pierre Nora, "o último dos grandes que acaba de partir".

Aplaudiu-se assim não apenas o erudito de altos voos, mas também o intelectual que tinha uma visão cívica da sua atuação e nunca caiu na tentação de se fechar numa confortável torre de marfim.

Ao contrário, sempre procurou divulgar suas reflexões, não hesitando em escrever manuais ou mesmo uma apresentação da Idade Média para crianças, tampouco em conceder dezenas de entrevistas para socializar conhecimento. Com esse intuito, produziu e apresentou por mais de 40 anos um programa radiofônico (o último foi ao ar na véspera da sua morte) que anunciava e comentava lançamentos editoriais na área de história.

DISCÍPULO Desde o princípio da carreira, Le Goff pautou-se por prolongar, consolidar e aprofundar as inovadoras propostas historiográficas da revista "Annales d'Histoire Économique et Sociale", fundada em 1929 pelo modernista Lucien Febvre e pelo medievalista Marc Bloch, de quem se dizia "discípulo póstumo".

A busca por essa "outra Idade Média" (título de uma coletânea de artigos que publicaria em 1977) --voltada mais para as estruturas do que para as conjunturas, para a produção cultural do que para a produção material, para os sentimentos do que para as instituições-- começou em 1957 com "Os Intelectuais na Idade Média".

Jacques Le Goff tinha 33 anos. Ali, em vez de estudar, como sempre tinha sido feito, o pensamento de filósofos e teólogos da época, preferiu olhar para eles desde o ponto de vista social: como profissionais do conhecimento, como membros de um novo tipo de corporação que surgia, a universidade, como habitantes de um espaço que então se expandia, a cidade.

O poder explicativo do pequeno livro e a boa receptividade que teve reforçaram as convicções do jovem historiador. E, ao mesmo tempo, confirmaram que era preciso estreitar os laços entre a história e as demais ciências humanas. A interlocutora privilegiada, devido aos grandes progressos que então conhecia, foi a antropologia. Para definir essa associação, que a partir daí guiaria seus passos, em 1978 Le Goff forjou o método e o rótulo "antropologia histórica".

Segundo o método, o medievalista deve observar a Europa medieval como um antropólogo observa uma sociedade exótica. Não se deve deixar enganar pela falsa proximidade entre o passado e seu próprio presente. Sob esses óculos, o que sempre havia estado na documentação passou a ser visto de outra forma, ganhou nova inteligibilidade. Entraram no campo do historiador temas como os gestos, o corpo, as cores, o sonho, o riso, os relatos maravilhosos.

Nos últimos anos, problemas de saúde impediram Le Goff de sair de casa, e ele deixou de ser "rato de biblioteca", como se definia. A limitação era considerável para quem, por questão geracional, nunca utilizou a internet. Nem por isso, porém, deixou de pesquisar e escrever (à mão!), contando com a ajuda de alguns amigos que lhe levavam fotocópias de artigos e livros emprestados de bibliotecas universitárias. Sua biblioteca pessoal também se revelou imprescindível, já que enriquecida todo mês por muitos livros que recebia de colegas e editoras de todo o mundo. Adaptado a essas condições de trabalho, nos últimos 15 anos de vida publicou exatamente 15 obras.

PERIODIZAÇÃO Neste começo de 2014, poucos dias depois de completar 90 anos, saiu seu último livro, "Faut-il Vraiment Découper l'Histoire en Tranches?" (É mesmo preciso fatiar a história?, ainda não traduzido no Brasil). Nesse ensaio, Le Goff retoma e aprofunda um tema que lhe era caro e que, embora fundamental para os historiadores, raramente merece maior reflexão: a periodização.

Devido às dificuldades epistemológicas da questão, quase por inércia se adota a velha divisão em quatro idades: Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. Mas, questiona Le Goff, tal periodização eurocêntrica ainda faz sentido no atual contexto de globalização? Não seria preciso buscar novos recortes, novas articulações?

O exemplo que, por especialização, resolve estudar, é o da passagem da Idade Média ao Renascimento, período cuja existência, com personalidade própria e antagônica aos séculos anteriores, ele nega com veemência. Aquela época faria parte de uma "longa Idade Média", que se prolongaria até meados do século 18.

Mesmo sem a criatividade e a erudição admiráveis dos textos publicados entre os anos 1970 e os 2000, percebe-se nas suas produções mais recentes uma compreensão global do período estudado, uma reflexão acumulada, um "savoir-faire". A leitura atenta de seus últimos livros revela a marca registrada de todo grande intelectual -- aquilo que é apenas sugerido, as pistas que são abertas têm para a produção futura do conhecimento quase tanto peso quanto aquilo que é trazido de imediato para o conhecimento presente.

Feito o balanço, mesmo sumário, da contribuição de Le Goff para as ciências humanas poderia-se aplicar a ele a conhecida frase de Steve Jobs: "A inovação distingue um líder de um seguidor".

Mas, como nosso personagem escreveu uma obra de peso sem jamais recorrer ao computador, é preferível lembrar de Bernardo de Chartres, pensador do seu querido século 12: "Somos anões sobre ombros de gigantes. Desse modo vemos melhor e mais longe que eles, não porque nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura maior, mas porque eles nos erguem à sua gigantesca altura". Jacques Le Goff foi um desses gigantes.


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