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Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do Leblon
RAFAEL SPERLINGI cross the streets without fear ("London, London", Caetano Veloso)
Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do Leblon. Ele está na beira da rua, concentrado, olhando os carros. A rua possui muitos carros, todos passando em alta velocidade, que podem atropelá-lo e destruí-lo. Mas Caetano Veloso é prudente e se prepara com muito cuidado. A travessia deve ser rápida e segura, dentro do possível. Caetano Veloso toma a decisão e começa a travessia. Ele chega ao outro lado da rua em segurança. Ele comemora a travessia segura.
-- Como você se sente após ter atravessado a rua, Caetano Veloso?
-- Eu estou muito feliz.
Caetano Veloso está com fome após atravessar a rua. Ele precisa encontrar um restaurante que sacie a sua fome.
-- Você está com fome, Caetano Veloso?
-- Sim.
-- Quanta fome?
-- Muita.
Caetano Veloso, usando sua memória, pensa em todos os lugares em que já esteve no Leblon. Após meditar, ele toma a decisão: vai a um restaurante próximo à rua em que ele está.
-- Por que você vai a esse restaurante, Caetano Veloso?
-- Porque ele é muito bom.
Caetano Veloso adentra o restaurante. Ele olha o cardápio e escolhe a comida. Caetano Veloso faz o pedido.
-- Você gosta dessa comida que você pediu, Caetano Veloso?
-- Gosto muito.
Caetano Veloso come a comida. Ele come com gosto e degusta seu sabor agradável.
-- Está gostando da comida, Caetano Veloso?
-- Sim.
Caetano Veloso chama o garçom e pede a conta. Quando o garçom chega, Caetano Veloso sente vontade de ir ao banheiro.
-- O que você vai fazer no banheiro, Caetano Veloso?
-- Vou fazer cocô.
Caetano Veloso adentra o banheiro. O banheiro é limpo e cheiroso.
-- Você gostou do banheiro, Caetano Veloso?
-- Sim.
Caetano Veloso estuda o banheiro por alguns instantes. Em sua mente, tenta decidir qual cabine irá utilizar. Ele toma uma decisão: a cabine do meio. Caetano Veloso arria as calças e senta na privada. Ele acha a privada confortável para sua bunda.
-- Você está confortável, Caetano Veloso?
-- Muito.
Caetano Veloso pensa em coisas boas enquanto defeca. Após defecar, limpa a sua bunda. Ele olha para as suas fezes.
-- Como estão as suas fezes, Caetano Veloso?
-- Estão ótimas.
Caetano Veloso dá descarga e sai do banheiro. Ele paga a conta e sai do restaurante. Caetano Veloso decide pegar o seu carro.
-- Por que você quer pegar o seu carro, Caetano Veloso?
-- Porque quero voltar para casa.
Caetano Veloso precisa atravessar a rua novamente para pegar seu carro. Ele se prepara para, novamente, atravessar uma rua do Leblon. Caetano Veloso pensa na última vez em que atravessou uma rua no Leblon: a preparação, a concentração, a travessia, a chegada, o sucesso. Após alguns segundos de preparação, ele inicia a travessia de volta. Caetano Veloso chega ao outro lado com sucesso.
-- Como você se sente após ter atravessado novamente a rua, Caetano Veloso?
-- Eu estou novamente muito feliz.
Caetano Veloso caminha alguns metros e adentra o estacionamento em que deixou seu carro. Após entrar, fala com um atendente e pede seu carro.
-- Você quer realmente pegar o seu carro, Caetano Veloso?
-- Sim.
O atendente trata Caetano Veloso com muita polidez e educação. Caetano Veloso pensa que o funcionário é muito bem preparado para atendê-lo.
-- Você está feliz com o atendimento, Caetano Veloso?
-- Muito.
Após ser deixado sozinho pelo atendente, Caetano Veloso decide sentar-se e esperar. Ele olha para o banco de espera e avista três lugares vazios. Após meditar por alguns instantes, toma uma decisão: irá sentar-se no do meio. Caetano Veloso caminha dois passos e senta-se. Ele acha o banco muito confortável.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- Ótimo.
Enquanto está sentado, Caetano Veloso pensa nas coisas que fez ao longo do dia: a travessia da rua, a refeição no restaurante, a evacuação no banheiro do restaurante, a travessia de volta ao outro lado da rua, a espera pelo carro.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- Ótimo.
Um funcionário aparece e diz que o carro de Caetano Veloso está pronto. Caetano Veloso levanta-se e segue o funcionário. O funcionário leva Caetano Veloso até seu carro e entrega-lhe as chaves. Caetano Veloso sorri e agradece.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- Ótimo.
Caetano Veloso liga seu carro e sai do estacionamento. Ele gosta de dirigir seu carro pelas ruas do Leblon. Logo após deixar a garagem, Caetano Veloso passa exatamente pelo lugar em que atravessou a rua. Caetano Veloso pensa que, se ele não estivesse no carro, mas estivesse atravessando a rua nesse instante em que passa pelo mesmo ponto em que, alguns minutos atrás, atravessou a rua, ele estaria sendo atropelado por seu próprio carro, que estaria sendo dirigido por ele mesmo, Caetano Veloso. Ele medita por alguns instantes e sorri: Caetano Veloso está feliz por estar dentro de seu carro, e não atravessando a rua, pois ele estaria sendo esmagado e, provavelmente, morto por seu próprio carro.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- Ótimo.
Caetano Veloso pensa em uma bela melodia, que veio até sua mente enquanto sentia-se bem por não estar sendo atropelado e morto por seu próprio carro. Ele dirige e canta. Caetano Veloso para no sinal vermelho e continua cantando com alegria e descontração, que são inerentes a Caetano Veloso.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- Ótimo.
Caetano Veloso, além de cantar, começa a movimentar os braços, como costuma fazer quando dança, de uma maneira bem característica de Caetano Veloso. Enquanto dança com os braços, Caetano Veloso olha para o carro ao lado, que também está parado no sinal vermelho. Caetano Veloso vê uma criancinha. A criancinha sorri para Caetano Veloso, que também sorri para a criancinha. A criancinha começa a imitar a dança com os braços que Caetano Veloso está ainda fazendo enquanto olha e sorri para a criancinha, que está no outro carro, parado no mesmo sinal vermelho que Caetano Veloso.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- Ótimo.
Caetano Veloso continua olhando para a criancinha e movendo seus braços. Ele nota que o carro da criancinha está se movendo e, utilizando os pés, acelera o seu carro. Caetano Veloso não precisa das mãos para acelerar o seu carro, pois o câmbio é automático, e, portanto, ele pode continuar a olhar a criança, que está parada no mesmo sinal vermelho que ele, e a mover os seus braços enquanto vê a criancinha se movendo para frente no outro carro, enquanto acelera o seu carro sem olhar para frente.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- Ótimo.
Caetano Veloso acelera o seu carro sem notar que, na verdade, o carro da criancinha avançou muito pouco, pois o pai dela queria avançar o sinal, mas desistiu quando notou que havia muitos carros passando em alta velocidade, e que poderiam abalroá-los e destruí-los. O carro de Caetano Veloso avança e, num determinado momento, fica bem no meio de um cruzamento. Neste momento, Caetano Veloso está sorrindo, movendo os braços, e tentando olhar para a criancinha, que já está a escapar do seu campo de visão, mas Caetano Veloso estica seu pescoço e, fazendo um grande esforço, ainda consegue ver um pouco da criancinha, que também sorri e continua a mover os braços como Caetano Veloso.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- Ótimo.
Nesse momento, em que Caetano Veloso encontra-se bem no meio de um cruzamento de uma rua no Leblon, um carro, em alta velocidade, choca-se violentamente contra o carro de Caetano Veloso. O choque é tão violento que o carro que estava em alta velocidade, ao contrário do carro de Caetano Veloso, que estava se movendo de forma vagarosa, na rua movimentada do Leblon, estraçalha a porta do carona do carro de Caetano Veloso e invade o interior de seu carro. No momento em que seu carro está sendo invadido pelo outro carro, o que estava em alta velocidade, Caetano Veloso ouve um som muito alto. Nesse momento, Caetano Veloso para de movimentar os braços e de olhar para a criancinha. A criancinha, que ainda estava movendo os braços, assim como Caetano Veloso, percebe que há algo de errado com Caetano Veloso.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- (...)
O carro de Caetano Veloso está rolando, em alta velocidade, pelas ruas do Leblon. Como Caetano Veloso está usando o cinto de segurança, nos momentos em que seu carro está de cabeça para baixo, ele permanece com sua bunda encostada no assento de seu carro.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- (...)
Por um pequeno instante, Caetano Veloso pensa que, se ele não estivesse ali, de cabeça para baixo, usando o cinto de segurança, em seu carro que rodopia no ar em alta velocidade pelas ruas do Leblon, mas sim estivesse atravessando a rua, ele estaria sendo atropelado por seu próprio carro, que estaria sendo dirigido por ele mesmo, Caetano Veloso. Ele medita por alguns instantes muito breves e sorri: Caetano Veloso está feliz por estar dentro de seu carro, que está rodopiando em alta velocidade pelas ruas do Leblon, e não atravessando a rua, pois ele estaria sendo esmagado e, provavelmente, morto por seu próprio carro.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- De certa forma, ótimo.
O carro de Caetano Veloso, após rodopiar por alguns instantes em alta velocidade, troca de pista e é acertado por um segundo carro que também está em alta velocidade, embora não estivesse rodopiando como o carro de Caetano Veloso, e sim andando da maneira normal, com as quatro rodas tocando o chão do Leblon. O choque interrompe o trajeto do carro de Caetano Veloso. Um terceiro carro, que não consegue frear a tempo, pois também está em alta velocidade pelas ruas do Leblon, choca-se contra a massa disforme que se tornou o carro de Caetano Veloso, que não está mais rodopiando, pois juntou-se ao segundo carro, que também estava em alta velocidade, embora não estivesse rodopiando como o de Caetano Veloso. O terceiro carro também tornou-se uma massa disforme e não é mais possível distinguir o carro de Caetano Veloso do outro carro que o havia acertado anteriormente. Logo, o último carro que acertou o de Caetano Veloso também se junta à massa disforme formada pelo carro de Caetano Veloso e pelos carros que o haviam acertado anteriormente.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- (...)
Nesse momento, Caetano Veloso está sendo esmagado pelas ferragens de seu carro, que está sendo pressionado pelas ferragens dos outros dois carros que o acertaram. Caetano Veloso, apesar de estar com seu corpo parcialmente dilacerado pelas ferragens do seu e dos outros carros, que nesse momento invadem cada vez mais o espaço interno de seu carro, estica o braço com dificuldade, esse mesmo braço que instantes atrás era observado e imitado pela criancinha feliz, mas que agora nem é mais um braço, e sim alguns pedaços de carne e sangue. Caetano Veloso estica o braço e alcança seu violão, que estava no banco traseiro, mas que, por causa do acolchoamento dos bancos, não foi destruído totalmente, e sorri exibindo os poucos dentes que ainda restam em sua boca, que na verdade nem é mais uma boca exatamente, pois para quem olha de fora é apenas um buraco ensanguentado. Caetano Veloso pensa que os estofados que ele mandou colocar em seu carro são muito bons, pois impediram que seu violão favorito fosse destruído.
-- Como está se sentindo, Caetano Veloso?
-- De certa forma, ótimo.
Quando consegue trazer o violão para perto de seu corpo, Caetano Veloso arrisca alguns acordes e pensa na melodia que estava compondo há alguns momentos, antes que seu carro fosse atingido diversas vezes, virando uma massa disforme e dilacerando seu corpo. Caetano Veloso arrisca alguns acordes e tenta cantar a melodia, mas falha, pois suas cordas vocais foram destruídas. No lugar de suas cordas vocais está um pedaço de aço de um dos carros que o acertaram. Mas Caetano Veloso não se importa e continua a mover o que sobrou de sua boca, enquanto pensa que canta a melodia que imagina em sua cabeça, pensando em qual letra ficaria boa nessa melodia, e que essa melodia poderia vir a se transformar em uma música de seu novo projeto, do seu disco que está planejado para o ano que vem e no qual ele vem trabalhando nos últimos meses. Caetano Veloso pensa que essa poderia ser a música de trabalho. Quem sabe.