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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Exercícios de verão

SYLVIO FRAGA NETO

Para Eucanaã

Os pombos oficialmente entraram em crise.
Meus poemas entraram numa crise em off.
Cada verso acha o poema ao lado mais bacana.
Como nesse momento acho mais bacana
estar na laje porque Flora está ali fumando.
Todo verso sonha ser o último do poema.
Flora está em pé, seu corpo apontado para o leste.
Vou apontar esse verso para o leste.

Uma infância em Nova Jersey
vem com defeitos como não saber
que Roberto Carlos só tem uma perna.
Era preciso compensar nas férias,
comer Mirabel e pegar conjuntivite.
Depois voltava às aulas como se tivesse ido à selva
mas nessa época Flora já sabia
"Emoções" de cor.

Hoje está muito escuro aqui dentro
do seu coração.
Acendo um fósforo e tremo com medo
de encontrar hieróglifos de um amor passado,
ouvir os canais de chuva correndo
e achar que escutei algum passo.
Mas estou mesmo sozinho aqui.
E apago.

Sol refinado da janela.
Sol mascavo que bate na terra.
Sol cavalheiro de vento, égua castrada.
Sol beira de espada.
Sol que tenta mas não penetra corações.
Sol da manhã que desbota o tapete da minha mãe
enquanto ela toma café com espuma de leite
e considera uma série de emoções inexprimíveis.

Às vezes penso: remover a alma
do meu corpo, calmamente.
Restaria na minha mão
um ovo
pequeno, parecido com o do sabiá.
Seria morno.
E não goro.
E não nascerá.

Estou louco para escrever esse poema
mas não posso tirar o olho da minha vida.
Oito da noite e o verão não entra pra jantar.
Quer ficar lá fora, fuçando cantos claros,
entrando em luminárias.
Obriguei Flora a fumar lá fora.
Ela apaga o dia com o pé.
Não não me olha assim.

Talvez o último poema antes de meu sobrinho nascer.
Meio-dia, sol de bosque sobre asfalto,
movimento comum para segunda-feira
na cantina da luz. O sol está espesso
como a lona sobre o casamento de estranhos.
Um homem limpa a calçada.
Penso na cadeira azul onde você fuma
e cata raios de sol para o jantar.

Vou descansar, como cigarros
entre pedras portuguesas.
Hoje sou muitos, mas somando tudo
valho dois tragos.
É preciso trabalhar muito, Carlos.
Se é que você me ouve.
Desmontaram o circo.
Vou deitar na lona arriada.


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