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Ilustrissima

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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

O bom soldado Svejk

Jaroslav Hasek tradução luís carlos cabral ilustração ana prata

-- Então eles mataram o nosso Ferdinand1 -- disse a empregada ao senhor Svejk, que abandonara havia alguns anos o serviço militar por ter sido declarado definitivamente idiota por uma junta médica do Exército e vivia da venda de cães, monstruosos vira-latas para os quais inventava falsas genealogias.

Afora essa ocupação, sofria de reumatismo e, naquele exato momento, estava massageando os joelhos com uma pomada de cânfora.

-- De qual Ferdinand está falando, senhora MüllerováS -- perguntou Svejk, sem parar de massagear os joelhos. -- Eu conheço dois Ferdinands. Um é o criado do farmacêutico Prusa, aquele que bebeu certa vez, por engano, um frasco de brilhantina, e também conheço um tal de Ferdinand Kokoska, que recolhe cocô de cachorro. Não temos motivos para lamentar por nenhum dos dois.

-- Meu caro senhor, estou me referindo ao arquiduque Ferdinand, o de Konopiste, aquele homem gordo e piedoso.

-- Virgem santa! -- exclamou Svejk. -- Que história! E onde o arquiduque foi morto?

-- Levou um tiro de revólver em Sarajevo quando passeava de automóvel com a arquiduquesa, senhor.

-- Então vejamos, senhora Müllerová... No automóvel... Bem, um senhor como ele pode se permitir tal luxo, mas não seria capaz de imaginar que um passeio desses acabaria mal. E ainda por cima em Sarajevo, que fica na Bósnia, senhora Müllerová! Deve ter sido coisa dos turcos. Não deveríamos ter lhes tomado, em hipótese alguma, a Bósnia-Herzegóvina. Ora, ora. Quer dizer, então, que o senhor arquiduque está repousando na paz do Senhor. Foi longo seu sofrimento?

-- Bateu as botas no ato, senhor. Sabemos que revólver é uma coisa séria. Não faz muito tempo, lá em Nusle, onde moro, um senhor que estava brincando com um revólver matou toda a família e também o porteiro do prédio, que fora ver quem estava atirando no terceiro andar.

-- Alguns revólveres não disparam mesmo que a pessoa tenha enlouquecido, senhora Müllerová. Há uma infinidade de sistemas de segurança, travas, coisas assim. Mas, para assassinar o arquiduque, devem ter comprado o que havia de melhor. Aposto o que a senhora quiser que o sujeito que fez isso estava impecavelmente vestido. Não há quem não saiba que atirar em um arquiduque é uma tarefa muito difícil. Não é como quando um caçador clandestino atira em um guarda-florestal. A questão é como chegar perto da vítima, coisa que não é possível quando se está vestindo roupas andrajosas. Precisa usar um chapéu tipo cartola se não quiser que a polícia o apanhe antes.

-- Estão dizendo que foi mais de um, senhor.

-- Isto é facilmente explicável -- disse Svejk, acabando de massagear os joelhos. -- Se a senhora quisesse matar um arquiduque ou um imperador, com certeza consultaria alguém. Muitas cabeças pensam melhor do que uma. Um sujeito sugere isso, outro, aquilo, e assim se chega a um bom resultado, como diz aquele nosso hino. O mais importante é aproveitar o momento em que a pessoa em questão está perto de você. A senhora se lembra do senhor Lucheni, aquele que perfurou a nossa falecida Elizabeth2 com uma lima? Veja, estava passeando com ela. Não se pode confiar mais em ninguém! Desde aquele dia nenhuma imperatriz se permite passear. E muitas pessoas terão a mesma sorte. A senhora verá que daqui a pouco chegará a vez do czar e da czarina e, que Deus não o permita, a do nosso imperador, pois se começaram com seu tio...3 O pobre ancião tem uma porção de inimigos. Ainda mais que Ferdinand. Como ainda há pouco dizia um homem na taverna, chegará o dia em que os imperadores serão escorraçados um atrás do outro de tal maneira que nem o poder do Estado poderá fazer nada por eles. Bem, esse homem não tinha dinheiro para pagar a conta, e o taverneiro teve de mandar prendê-lo. E o sujeito deu um tapa e depois dois socos no policial. E aí o levaram no camburão para que recuperasse a consciência. Ora, senhora Müllerová, hoje em dia acontece cada coisa! Bem, é mais uma perda para a Áustria. Quando eu estava servindo no Exército, um soldado de infantaria matou um capitão a tiros. Carregou sua espingarda e foi direto ao escritório, onde lhe disseram que não tinha nada a fazer ali, mas o homem insistiu que precisava falar com o capitão. O oficial apareceu e mandou-o, sem pestanejar, para o xilindró. O soldado pegou a espingarda e lhe deu um tiro no coração. A bala saiu pelas costas do capitão e ainda causou estragos na sala. Quebrou um vidro de tinta e sujou uma pilha de documentos oficiais.

-- E o que aconteceu com o soldado? -- perguntou a senhora Müllerová quando Svejk estava se vestindo.

-- Enforcou-se com os suspensórios -- disse Svejk, escovando o chapéu. -- E os suspensórios nem eram dele. Pedira-os emprestados ao carcereiro, dizendo que suas calças estavam caindo. O carcereiro foi rebaixado e condenado a seis meses, mas não cumpriu a pena. Fugiu para a Suíça e agora está pregando em uma igreja qualquer. Hoje em dia são raras as pessoas honradas, senhora Müllerová. Imagino que o arquiduque Ferdinand também se equivocou a respeito da pessoa que atirou nele em Sarajevo. Certamente viu um senhor e pensou: se está gritando viva, só pode ser um homem honesto. E, em troca, o sujeito lhe deu um tiro. Atirou uma ou várias vezesS

-- Segundo os jornais, senhor, o arquiduque parecia uma peneira. Esvaziaram um pente inteiro em seu corpo.

-- Essas coisas acontecem muito depressa, senhora Müllerová, terrivelmente depressa. Se eu tivesse que fazer uma coisa dessas, compraria uma Browning. Parece um brinquedo, mas em dois minutos você pode fuzilar vinte arquiduques, gordos ou magros. Embora, aqui entre nós, senhora Müllerová, deva dizer que é mais fácil acertar um gordo do que um magro. Lembro que uma vez em Portugal fuzilaram um rei. Também era gordo. A senhora sabe que um rei nunca é magro. Agora vou à taverna U Kalicha. Se alguém vier buscar o pinscher, aquele pelo qual já recebi um adiantamento, diga que está no meu canil, fora da cidade, porque não faz muito tosei suas orelhas e só pode ser transportado depois de se cicatrizar, para não pegar um resfriado. Deixe a chave com o porteiro.

Notas do tradutor:

1. O arquiduque Franz Ferdinand, sobrinho do imperador austríaco Franz Joseph, e sua esposa foram assassinados em 1914, em Sarajevo, pelo nacionalista sérvio Gavrilo Princip.

2. A imperatriz Elizabeth da Áustria foi esfaqueada por um anarquista em 1898, na Suíça.

3. Na verdade, Franz Ferdinand era sobrinho do imperador.


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