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O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.

Humor

O sentido do riso

A lucidez alucinada dos britânicos do Monty Python

GREGORIO DUVIVIER

resumo

A trupe de humoristas Monty Python surgiu, sóbria, em meio a uma Inglaterra sob forte influência das drogas alucinógenas. Às vésperas de uma reunião inédita do grupo, em estádio de Londres, o ator e escritor perscruta as razões pelas quais os esquetes dos britânicos são, para ele e para muitos, tão engraçados.

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- Bom dia, por gentileza, eu gostaria de um artigo sobre o Monty Python.

Se este artigo fosse uma cena do "Flying Circus", talvez começasse com uma pessoa pedindo algo, educadamente --provavelmente Michael Palin, o mais educado do grupo, ou Graham Chapman, o clássico "straight man". O atendente, se fosse John Cleese, talvez atacasse o cliente com uma banana. Se fosse Eric Idle, pode ser que respondesse em anagramas. Terry Jones iniciaria uma inquisição espanhola, enquanto Chapman ou Idle permanceriam atônitos --até que um pé gigantesco, desenhado por Terry Gilliam, esmagaria a todos-- ou algo totalmente diferente.

1999 - Muito antes do WhatsApp, já compartilhávamos toda sorte de vídeos, de todo tipo de conteúdo, por fitas de VHS devidamente rebobinadas, mas, assim como no WhatsApp, compartilhava-se sobretudo pornografia --ao menos entre os meus amigos.

O Rafael Queiroga era o cara mais popular da turma de terça-feira do teatro Tablado, aula da Cacá Mourthé. Eu tinha 13 e ele tinha 16. Isso fazia dele uma espécie de ancião, portador das novidades do mundo lá fora. E ele tinha me abençoado com a sua amizade. Um dia ele me deu um VHS surrado de capa muito colorida onde estava escrito: "Monty Python Ao Vivo no Hollywood Bowl". Não parecia pornô. Merda.

Já em casa, cheguei à conclusão definitiva: não era pornô. "Isso é muito engraçado. Mas não era pra ser engraçado. Tem alguma coisa errada com isso. Mas eu tô achando muita graça. Tem alguma coisa errada comigo." Eram muitas sensações ao mesmo tempo. Fiquei obcecado. Passei a vida tentando entender por que aquilo me fazia rir. Passei a perseguir com unhas e dentes essa coisa estranha que o faz rir sem você saber por quê.

1970 - Monty Python surge no momento mais louco do século, na cidade mais louca do mundo. Quantidades industriais de maconha eram combinadas com doses cavalares de drogas sintéticas e alguns alucinógenos naturais. No entanto, estranhamente, os Python passaram ao largo de tudo isso.

Ao contrário daquele outro grupo de meninos ingleses que mudaram o mundo, os Python tiveram uma vida acadêmica intensa --e uma vida social pacata. De um lado, Cleese, Chapman e Idle fizeram respectivamente direito, medicina e literatura em Cambridge --e se conheceram no Footlights, o clube de teatro universitário mais famoso do país. Do outro, Palin e Jones estudaram história e literatura em Oxford --encontraram-se no Oxford Revue, o segundo clube de teatro mais famoso do país. Gilliam, o sexto integrante, por sua vez, não estudou --"ele é americano", explica Cleese.

Talvez porque fossem estudiosos demais, talvez porque a comédia, mesmo a mais louca, exige uma certa sobriedade, Eric Idle afirma que nunca escreveram nenhum esquete sob a influência de droga alguma --a não ser por Graham Chapman, que bebia industrialmente mas, em compensação, quase não escrevia.

Acredite se quiser: os Python passaram os "swinging sixties" em reuniões de redatores --escrevendo, escrevendo, escrevendo e, vez ou outra, discutindo com furor se uma piada tinha graça. Por incrível que pareça, a revolução do humor se deu sem ajuda de psicotrópicos e foi amplamente televisionada.

O convite da BBC partiu de Barry Took --um humorista consagrado-- que reuniu os jovens redatores mais talentosos do mercado e deu-lhes o sonho de qualquer redator: carta-branca total. A ideia era romper com a tradição da TV inglesa --coisa dificílima, porque a televisão inglesa já era muito louca.

O humor absurdo, graças a Peter Cook e Dudley Moore, estava em voga. David Frost e Marty Feldman destilavam humor nonsense no horário nobre, com textos dos próprios Python. Em 1969, Spike Milligan estreia um programa mais ensandecido do que qualquer episódio do "Flying Circus" conseguiria ser; já havia em Milligan o clássico final metalinguístico fartamente usado pelo grupo nos anos a seguir: "Esse é o pior esquete em que eu já estive", "Vamos terminar essa cena?", "Vamos".

Para revolucionar a loucura vigente, o ingrediente-surpresa dos Python foi a lucidez. Embora hoje o nome dos Python seja evocado sempre que se fala em humor nonsense, não acredito que seja essa a grande contribuição do grupo.

Vale lembrar que o "Flying Circus" surge 40 anos depois do movimento surrealista e 20 anos depois do teatro do absurdo.

Se lhe vendem um papagaio morto e você dá em troca uma cacatua manca, você caiu no nonsense --e perdeu o espectador. O humor dos Python reside no fato de que um dos personagens sabe que o papagaio está morto enquanto o outro se recusa a percebê-lo. A tensão entre a loucura de um e a lucidez do outro prende o espectador na cadeira. Ele ri de nervoso. A grande novidade explosiva que caracteriza o pythonesco não é a comédia alucinógena, mas, muito pelo contrário, a inserção de uma interpretação realista dentro de um universo alucinado.

A piada nunca é sublinhada pela interpretação. O ator costuma apontar para uma direção contrária ao que o texto diz. Embora John Cleese seja um mestre do humor físico, enquanto suas pernas chutam o vento e sua voz alcança 10 mil decibéis, seu rosto permanece impassível. Seu olhar permanece inalterado. Ao psicodélico vigente, eles acrescentaram a impassibilidade inglesa (ou, se preferirem, a fleuma), além de uma crítica social ferina, da qual ninguém escapa.

O último filme do grupo, "O Sentido da Vida", dispensou o contato com a realidade: está mais pra Buñuel que para Monty Python. E, assim como os filmes de Buñuel, tem momentos geniais, mas não me provoca gargalhadas. O filme está voltando ao cartaz, remasterizado, e estará nos cinemas brasileiros a partir de 10 de julho. Vale a pena ver, embora não se compare aos anteriores "Em Busca do Cálice Sagrado" e "A Vida de Brian".

Nesses dois filmes, a trajetória do protagonista mantém o pé no real enquanto os coadjuvantes mais inusitados surgem ao seu redor: cavaleiros que dizem "ni", Pôncio Pilatos de língua presa etc. Graham Chapman, o Python mais louco, interpreta ambos os protagonistas com uma seriedade emocionante. Sua lucidez --a palavra fundamental-- torna hilariante a loucura ao seu redor.

Vale também lembrar que muitas vezes o que parece puro delírio é uma crítica corrosiva. "A Vida de Brian" bate mais na Igreja do que qualquer vídeo do Porta dos Fundos, e gerou reações ainda mais odientas. Salve a lucidez, mãe da comédia! Salve Monty Python, inventor da lucidez alucinada!

2014 - Os seis vão se apresentar em julho num estádio em Londres. O motivo da reunião inédita não é a saudade, mas sim uma dívida de 800 mil libras com um antigo produtor que processou o grupo, além da pensão de 600 mil libras que Cleese paga anualmente para sua ex-mulher.

Não se sabe qual vai ser o conteúdo do show. Talvez tenha material novo, talvez só velhos esquetes. Não importa. Estarei lá. Todos nós, do Porta dos Fundos, estaremos lá. O motivo? Também temos uma dívida a pagar, incalculável.


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