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Imaginação

Mercúrio em Sagitário

Um trecho de "Os Luminares"

ELEANOR CATTON

Os doze homens reunidos no salão de fumantes do Crown Hotel davam a impressão de terem se encontrado ali por acaso. Pela diversidade de suas roupas e comportamentos --túnicas, fraques, casacos Norfolk com botões de chifre de boi, gabardinas amarelas, cambraia e brim--, eles poderiam ser tomados por doze estranhos em um comboio de trem, cada qual rumando a um destino de uma cidade imersa em névoa e marés suficientes para separá-los; de fato, o isolamento estudado com que cada um daqueles homens se debruçava sobre seu jornal, se inclinava para bater as cinzas na lareira ou apoiava as mãos sobre a baeta para dar sua tacada no bilhar contribuía para formar aquele clima de silêncio físico que domina, tarde da noite, uma ferrovia pública --silêncio cá amortecido não pelo rumor e pelo baque dos vagões, mas pelo robusto retinir da chuva.

Tal foi a percepção do sr. Walter Moody, parado junto à soleira, com a mão apoiada na moldura da porta. Não lhe ocorreu que ele poderia estar perturbando uma conferência privada e que os homens ali reunidos se tivessem calado assim que ouviram seus passos pelo corredor; quando ele abriu a porta, cada um dos doze homens havia retomado suas atividades (de maneira assaz atropelada, de parte dos jogadores de bilhar, pois estes haviam esquecido suas posições) com tamanha demonstração de absorção que ninguém sequer olhou por cima dos ombros quando Moody adentrou na sala.

O rigor e a constância com que todos aqueles homens o ignoraram despertariam a curiosidade do sr. Moody caso ele estivesse mesmo ali, de corpo e alma.

Como ora se encontrava, ele estava enjoado e perturbado. Ele sabia que a viagem para West Canterbury seria, na pior das hipóteses, fatal, um eterno rolar pela água e pela espuma branca que terminaria no cemitério destruído do banco de areia de Hokitika, mas ele não tinha se preparado para os horrores peculiares daquela jornada e encontrava-se ainda incapaz de falar sobre eles até consigo mesmo. Moody era por natureza intolerante a qualquer eventual deficiência em sua própria pessoa --o medo e a doença fizeram-no introverter-se--, e foi por essa razão que ele falhou atipicamente em captar o clima daquela sala em que acabara de adentrar.

Moody tinha uma expressão natural de atenção e presteza. Seus olhos acinzentados eram grandes e quase não piscavam, e sua boca, elástica e masculina, sempre se fixava em uma elegante expressão de preocupação. Seus cabelos tendiam para um encaracolado bastante cerrado; os cachos lhe caíam pelos ombros na juventude, mas agora ele os cortava bem rentes ao crânio, partia-os ao meio e penteava-os, lisos, com uma pomada de aroma adocicado que tostava naturalmente os fios até um tom amarronzado e oleoso. Sua testa e bochechas eram quadradas, o nariz era reto, e a cútis, suave. Não completara vinte e oito anos, ainda era ágil e preciso em seus movimentos e detinha aquele tipo de vigor brejeiro e imaculado que não transmite ingenuidade nem malícia. Ele apresentava-se à maneira de um mordomo, com discrição e raciocínio rápido e, por conseguinte, conquistava a confiança dos menos volúveis dos homens e era constantemente convidado a intermediar relações entre pessoas que mal havia conhecido. Tinha, em suma, uma aparência que denunciava muito pouco de sua essência, mas uma aparência que imediatamente atraía a confiança dos demais.

Moody não era nada indiferente às vantagens que sua inescrutável graça lhe proporcionava. Assim como a maioria das pessoas sobejamente bonitas, ele passava longas horas estudando a própria imagem no espelho e, de certa forma, conhecia melhor o seu exterior que seu mundo interior; encontrava-se sempre em algum compartimento de sua mente, dedicando-se a pensar na sua aparência. Ele passara muitas horas na alcova de seu quarto, onde o espelho triplicava sua imagem, mostrando seu corpo ao mesmo tempo de frente, de perfil e de meio perfil: um Carlos 1º retratado no quadro de Van Dyck, embora muito mais atraente. Essa era uma prática íntima, que ele provavelmente negaria manter --pois quão severamente condenada pelos profetas morais de nossa época é a autoanálise! Como se a personalidade nada tivesse a ver com a essência, e ele apenas se olhasse no espelho para confirmar a própria arrogância; como se o ato de examinar a própria aparência não fosse tão sutil, pleno e em constante mudança quanto qualquer vínculo entre almas gêmeas. Em seu deslumbramento, Moody procurava antes dominar a própria beleza que elogiá-la. Decerto, toda vez que via seu próprio reflexo numa floreira ou numa vitrine após o anoitecer, ele sofria um arrepio de satisfação --mas uma satisfação comparável à do engenheiro ao examinar uma obra que ele mesmo criou e constatar que ela é esplêndida, brilhante, bem conservada e que funciona exatamente como ele previa.

SOBRE O TEXTO

Este excerto abre o romance "Os Luminares", com que Eleanor Catton, convidada da Flip deste ano, venceu o Man Booker Prize de 2013. Em mais de 800 páginas (foi o mais longo livro já contemplado pelo tradicional prêmio britânico), o volume, que sai no Brasil no mês que vem, pela Biblioteca Azul, narra a empreitada de Walter Moody, que deixa a Inglaterra para ir à Nova Zelândia no século 19, quando o país vive uma corrida do ouro, em trama que se entretece com aspectos do zodíaco --luminares são, na astrologia, a designação dada ao Sol e à Lua.


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