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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

A casa das possibilidades perdidas

CAROL BENSIMON

Eu estava usando botas amarelas de borracha, mas não tinha chovido. As pessoas iam e vinham pelas calçadas como se aquela fosse uma noite especial, passavam na minha frente de braços dados e sempre rindo de uma dessas gracinhas que fazem os novos casais, essa coisa de braços dados é muito antiga, eu pensava, mas atribuía minha própria reflexão ao mau humor latente que agora vinha comigo, a vida não andava boa, isso era bem estranho para quem sempre tinha sido chamada de garota de sorte, para quem continuava sendo chamada de mulher de sorte, mas o fato é que hoje eu achava que essas pessoas, as que se referiam a mim assim ou assado, mas sempre de uma forma muito positiva, elogiosa, lisonjeira, exagerada até, faziam isso com o único e claro objetivo de me irritar. Havia uma roda-gigante no fim da rua, brilhando. Havia um cara vestido de vampiro com um palheiro entre os dedos. Maçã do amor, quatro reais. Eu de botas amarelas sem saber muito bem por que nós estávamos em clima de festa. Um muro comprido, que provavelmente escondia um desses casarões antigos e descontextualizados, estava coberto de cartazes, todos iguais. "Entre e veja como sua vida poderia ter sido."

Ele disse "lembra de mim?", parado no pé de uma escada curva, e eu demorei para lembrar, porque ele tinha ficado bonito. Na minha cabeça, aquele garoto sempre estivera associado ao cheiro do laboratório de ciências, então eu fiquei meio que procurando partículas de formol no ar. Ele disse: "a gente podia ter ficado juntos", mas eu só me lembrava de um beijo roubado perto da horta da escola.

Eu não me lembrava nada do segundo cara a aparecer. Contou que tinha me oferecido um drinque em um bar chamado Espiral, e esse bar tinha virado uma sinuca, e esse bar tinha virado uma lavanderia, e esse bar estava vazio agora e era uma pena tremenda que aqueles sofás vermelhos de couro não ocupassem mais os cantos escuros e a trilha não fosse mais o mesmo jazz sussurrado e triste triste triste. "Um Manhattan com o copo errado", ele disse, contraindo os cantos da boca como se lutasse para mastigar papel crepom. Eu perguntei: "o quê?". "Eles te serviram Manhattan no copo errado. Eu tinha bebido um Manhattan em Manhattan alguns meses antes e sabia do que eu estava falando." "O que aconteceu depois?", insisti. "Você me contou tão pouco de você, e eu queria saber tanto, tanto."

Subi para o segundo andar. Meu pai estava sentado na parte de baixo de um beliche, a cabeça inclinada para não tocar o estrado. O cabelo era quase todo preto, lambido pra trás, como quando eu tinha quinze anos e chorava por qualquer coisa. Ele disse: "por que você brigou com sua irmã?". E eu lembrei que ela tinha rasgado meu poster do New Kids on the Block depois de a gente se engalfinhar por algum motivo bem bobo que tinha relação com o fato de que ela sempre acordava de mau humor e me respondia atravessado. Dois dias depois, ela começou a limpar o quartinho da bagunça e se mudou para lá. Meus pais se separaram naquele mesmo verão, depois que meu meu pai foi pescar com os amigos e pensou demais vendo aquela imensidão de água parada, luz e morros enquanto os peixes não mordiam o anzol. Ao menos foi isso que mamãe ficou dizendo, por meses e meses, até enlouquecer completamente.


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