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Um jogo que atingiu profundidade trágica

JONATHAN JONES

Os rostos angustiados e os corpos torturados revelam um terrível desastre. Homens choram sem pudor. As crianças soluçam como nunca --não da maneira como chorariam depois de uma briga no parquinho, mas com uma nova e terrível sensação de perda. A mão de uma mulher se torna uma garra contorcida de dor, raiva e pesar, e seu rosto é como uma máscara de luto.

Mas os brasileiros que foram fotografados expressando seu pesar naquele começo de noite nublado, em cenas de angústia que se estenderam do estádio do Mineirão à praia de Copacabana, não choravam um massacre, atrocidade ou qualquer outra coisa que parecesse justificar tão infinita tristeza. Estavam simplesmente em choque pela derrota de sua seleção de futebol por 7 a 1, diante da Alemanha, na semifinal da Copa.

"Simplesmente" talvez seja uma força de expressão brutal. O placar parecia mais o de uma partida de pebolim, e a humilhação para o país anfitrião do Mundial 2014, conhecido também como um dos grandes países futebolísticos do planeta, é muito mais que trivial. No entanto não importa de que maneira se considere a questão, as imagens dos brasileiros reagindo à derrota vão além do esporte e ingressam em um estranho reino psicológico de sofrimento e luto. As fotografias destroem qualquer ideia de que o futebol seja "apenas um jogo".

Na tortura da derrota prolongada, os brasileiros --jogadores e torcida em igual medida-- parecem contemplar um abismo sem fundo que dilacera tudo aquilo em que acreditam. Os golpes repetidos dos gols alemães parecem demolir não só o orgulho esportivo dos brasileiros mas seu senso de quem são e do que suas vidas significam.

No romance "O Idiota", de Dostoiévski, um dos personagens, ao comentar "O Cristo Morto" (1521) diz que "um homem pode perder a fé olhando aquele quadro". Para os amantes do futebol brasileiro, a julgar por suas imagens de horror, essa derrota já lendária é o equivalente da obra de Holbein, uma recordação emblemática que destrói ilusões e os priva de qualquer forma de consolo.

Depois do quarto gol da Alemanha, um torcedor na arquibancada brasileira desvia o olhar do campo, com lágrimas nos olhos. Mas ele não parece lamentar apenas o gol. Pode-se ver toda a sua vida passando diante de seus olhos. Seu rosto contempla o mundo sombriamente. É como se todas as perdas que ele experimentou ou consegue imaginar o assolem de uma vez. E então a dor se congela, e ele recua um passo e parece compreender a escala do acontecido. Tudo aquilo em que ele acreditava, tudo aquilo que ele esperava, é só cinzas, e sal, e cacos de vidro.

É essa a profundidade da dor que a partida de futebol em questão parece ter deflagrado.

Em uma foto tirada no estádio ao final do primeiro tempo, um menino precisa erguer os óculos para limpar as lágrimas dos olhos. Ele parece completamente abandonado, como se tivesse subitamente deixado a infância e ingressado em um brutal e desencantado mundo adulto feito de dor e realidade cruel.

Dois meninos chorando na praia de Copacabana parecem compartilhar dessa perda acidental da inocência, em confronto com uma tragédia com a qual não têm como lidar.

A palavra "tragédia" parece inevitável. Em "Retrato do Artista Quando Jovem", de James Joyce, Stephen Dedalus, um escritor em formação, nega, em uma passagem famosa, que a morte de uma jovem em um acidente de rua seja trágica. "O repórter definiu a morte como trágica. Não é. Fica distante do terror e da piedade, de acordo com os termos de minhas definições."

Dedalus está se referindo a Aristóteles, que disse que a tragédia deve despertar piedade e terror. Mas, se um acidente fatal pode não ser trágico, se ele não comove suficientemente os circunstantes, talvez uma partida de futebol possa ser uma verdadeira peça de teatro trágico, sujeitando seus espectadores aos mais profundos e escuros pensamentos e emoções.

Pois é fácil demais acusar o brasileiro que pranteia sua derrota épica de reagir a um reles jogo como se fosse uma morte na família. Sófocles e Shakespeare se deliciariam caso suas tragédias assombrassem a plateia de maneira tão profunda quanto esse jogo de futebol fez.

O futebol é o fenômeno mais absurdamente superpromovido da cultura moderna, e a Copa do Mundo já foi acusada de tudo --de irrelevância a corrupção maciça--, mas, em momentos como esse, fica claro por que, para tantas pessoas, o esporte é mais que um jogo.

De acordo com Aristóteles, a tragédia precisa causar catarse --e talvez exista uma grande catarse nessas imagens, nas quais as pessoas contemplam todos os pesares, perdas e desespero que conseguem lembrar ou imaginar nos amargos 90 minutos de uma derrota esportiva selvagemente desesperada. O sofrimento no campo se torna um denso vinho escuro no coração. É bom experimentar um pesar capaz de depurar a esse ponto.

Por uma noite apenas, o futebol deixou de ser esporte, entretenimento ou mesmo expressão de nacionalismo. Tornou-se arte. Tornou-se profundo.


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