Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Sete a um - Imaginação

Um conto

A Alemanha é muito melhor do que o Brasil

ANDRÉ SANT'ANNA

Ela amava o João Gilberto e pensava que um povo capaz de fazer aquela música devia ser o povo mais maravilhoso do mundo. Ela tinha assistido "Bye Bye Brasil" no cinema umas cinco vezes. Ela ficou completamente entusiasmada com o "Macunaíma", do Antunes Filho, no teatro, lá na Alemanha. Ela não ligava para futebol, até perceber que o futebol era a maior expressão cultural do Brasil. E ela perguntou para o pai sobre o futebol brasileiro e o pai dela disse que o futebol brasileiro era um negócio mágico, mítico, poesia, e falou sobre os lançamentos em profundidade do Gérson para Pelé e Jairzinho e sobre o Clodoaldo driblando vários italianos sem tocar o pé na bola, na final de 70, e um tal quadrado mágico que ele tinha visto, ao vivo, na Espanha, em 1982, o Toninho Cerezo, o Falcão, o Sócrates e o Zico.

Ela não entendia nada dessas coisas, mas ela sentia uma beleza muito rara naquelas histórias que o pai dela contava. E quando passava um jogo do Brasil na televisão, lá na Alemanha, ela assistia. Ela achava incrível como os brasileiros eram tão diferentes uns dos outros e tão iguais uns aos outros, a tal mistura de raças. Havia um louro muito louro, muito claro, e um negro muito negro, preto, e, entre o louro e o preto, havia todas as tonalidades de cor, branco, bege, marrom, negro, e ela não aguentou mais viver longe do Brasil, aprendeu português e se sentou ao lado da Guiomar, no avião, quando voou para se misturar no Brasil.

A Guiomar era o grande amor do Didi Folha-Seca e o Didi estava na poltrona ao lado da Guiomar, no corredor. E o amor de Didi e Guiomar era uma das histórias míticas do futebol brasileiro e ela não sabia quem era a Guiomar, mas achava lindo que, no Brasil, uma branca demonstrasse tanto amor por um negro. O Didi sempre se levantava para andar no corredor, por causa do problema na coluna, e a Guiomar ensinou para ela uma receita de moqueca de peixe e depois disse que o Didi ali era bicampeão do mundo e tinha feito o primeiro gol do Maracanã, o maior estádio do mundo, palco da poesia do Garrincha, aquela figura inacreditável. E ela pegou um autógrafo com o Didi, que parecia um rei com aquela elegância toda, e mandou para o pai dela, lá na Alemanha, assim que desembarcou no Rio de Janeiro, com a alma cantando.

E ela conheceu o Brasil todo e amou o Brasil, essas alemãs valentes, de mochila nas costas. Ela conheceu umas aldeias de pescadores que assavam uns peixes para ela, numas praias desertas, à luz da lua, os caiçaras tocando viola, rabeca e pandeiro, as mulheres cantando e batendo palmas. Ela cantou e bateu palmas vários dias seguidos, na Bahia, no Pelourinho daquela época que já faz uns trinta anos, e aprendeu capoeira e bebeu cachaça pelo gargalo e nem ficava de porre, só ficava feliz. Ela navegou pelo rio Amazonas, olhava para a floresta e parecia que a floresta respirava forte, parecia até que Deus existe. E pegou carona de caminhão e ouviu histórias incríveis do Brasil. Ela viveu numa aldeia de índios e dançou com os índios e nadou nua naqueles rios, naquelas cachoeiras, com as crianças da aldeia, e chegou em São Paulo com o cabelo louro cortado que nem o dos índios, cheia de colares e pulseiras de miçangas e um brinco com três penas de arara, uma azul, uma amarela e outra vermelha. Ela achou a cidade de São Paulo meio feia no começo, mas depois foi descobrindo aquela imensidão, os italianos, os japoneses, os espanhóis, os libaneses, e começou a achar aquilo tudo muito louco, muito interessante, foi gostando cada vez mais daquela gente. Sentiu ternura até pelo porteiro da pensão barata onde morou, no centro da cidade, que, ao descobrir que ela era alemã, falou assim, achando que ia agradar: "Heil Hitler".

Ela viveu por muitos anos no Brasil sem voltar para a Alemanha. Ela não queria saber de Alemanha.

Até que o Brasil se tornou o melhor país do mundo e o povo brasileiro se tornou o povo mais maravilhoso do mundo. Em toda parte, na televisão, ela ouvia dizer o quanto o Brasil estava ficando bom, melhor em tudo, se tornando uma potência econômica, querendo um lugar no Conselho de Segurança da ONU, um lugar na Opep, o presidente dos Estados Unidos dizendo que o presidente do Brasil era o cara, o presidente do Brasil dizendo para os brasileiros que eles poderiam ter carros incríveis, viajar de avião, e que os brasileiros deveriam consumir muito, comprar muitas coisas como batata frita, home theater e aqueles iogurtes que ajudam as mulheres a baixar o acúmulo. E tudo começou a ficar proibido e um dia, quando ela tirou a parte de cima do biquíni, na praia maravilhosa, uns brasileiros melhores do mundo fizeram um círculo em volta dela e jogaram areia nela e dois policiais melhores do mundo ordenaram que ela botasse a parte de cima do biquíni, já que no Brasil só pessoas do sexo masculino podem ir à praia sem camisa.

Depois de muitos anos, ela foi visitar os pais dela, lá na Alemanha, em Berlim, e notou que havia muita mistura de raças por lá. Árabes amando japonesas, africanas de mãos dadas com finlandeses, curdos com filhos mulatos e, no rádio, lá na Alemanha, tocava João Gilberto, Hermeto e Itamar Assumpção que não tocava no Brasil e ela percebeu que os alemães estavam sempre sorrindo, que os rios estavam todos limpos, que as bibliotecas e centros culturais estavam repletas de crianças negras aprendendo.

Na volta dela, o Brasil sediava a maior Copa do Mundo de todos os tempos e ela viu, na televisão, os jogadores alemães dançando com os índios amigos dela e vestindo a camisa do Bahia, todos sempre sorrindo, e o narrador dos jogos da televisão dizendo como os alemães eram frios, pragmáticos e como os brasileiros estavam ensinando os alemães a serem felizes.

E, na semifinal da Copa, aos 30 minutos do primeiro tempo, ela descobriu que a Alemanha era muito melhor do que o Brasil. Inclusive no futebol.

SOBRE O TEXTO

O conto ao lado foi escrito especialmente para a "Ilustríssima", depois da derrota do Brasil para a Alemanha na última terça-feira (8). André Sant'Anna é autor do romance "O Paraíso É Bem Bacana", cujo protagonista é um jogador de futebol.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página