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Diário de Gaza

O esconderijo da caravana

O lugar de encontro que virou refúgio

DIOGO BERCITO

Dois gatinhos ensaiam os primeiros passos fofos na terra suja de Khan Yunis. São duas bolas de pelo abaixo do portão que resta do um dia grandioso caravançarai --ou "khan", em árabe-- de Yunis, de onde vem o nome desta cidade no sul da faixa de Gaza. Eles são observados, durante a operação militar israelense, pela figura de dois leões talhados na pedra.

O khan, hoje em ruínas, foi construído no século 14 pelo príncipe mameluco Yunis. A região de Gaza era, então, não um estreito de terra empobrecido e castigado pela guerra, mas um importante entreposto médio-oriental. Os moradores da cidade conhecem hoje esses muros como "o castelo", apesar de o khan ter sido uma pousada para comerciantes. Caravanas protegiam-se ali na rota entre o Egito e a Síria. A noite lhes servia para a troca cultural.

Durante a semana passada, quando visitei a cidade, encontrei o caravançarai revivendo a sua vocação. Muhammad al-Amur refugiava-se em uma casa erguida atrás dos muros. Seu pai havia morrido uma semana antes, em um ataque aéreo israelense. Eram mais de 20 pessoas escondidas ali, recebidas pela família al-Agha --que diz ter há séculos o controle dos arredores do khan.

"Nos tempos do príncipe Yunis, o khan era seguro. Ninguém atacava quem dormisse aqui", diz Mazen al-Agha.

TÂMARAS

Khan Yunis recebeu milhares de desprotegidos desde o início da operação militar Margem Protetora, lançada por Israel em 8 de julho. A região de Khuzaa, ao leste, é um dos cenários mais devastados pelos ataques de artilharia e tanques de guerra, e seus moradores vivem agora no entorno do caravançarai.

Refugiados estão apinhados nas calçadas da rua Saladino, cujo nome --me diz o morador local Wail al-Masri, 26-- celebra a passagem do Exército de Saladino por aquelas paragens áridas, no século 12. O herói da dinastia aiúbida rumava à Galileia, onde venceria os cruzados europeus na decisiva batalha de Hattin.

Entre Khan Yunis e a cidade de Gaza, histórico porto de escoamento de incenso, o carro é flanqueado por terras cultivadas. Um trecho curto, Deir al-Balah (monastério da palmeira), produz tâmaras. Mas as plantações em todo o estreito de terra foram abandonadas ao tornarem-se regiões fantasmas, assombradas pelos bombardeios.

MANJERICÃO

Enquanto me preocupo com a possibilidade da morte, Jihad Rihan, minha tradutora, me conta casualmente como ela escuta, todas as noites, a artilharia naval na região costeira de Gaza.

Na operação Pilar Defensivo, em 2012, a residência da família dela foi queimada por uma explosão.

Seu primeiro nome significa "esforço", em geral traduzido no Ocidente por "guerra santa".

O sobrenome quer dizer "manjericão". Numa manhã, ela me entrega, por gentileza, um ramo das folhas. Passamos o dia com a planta próxima das narinas, nos esquecendo do cheiro de fumaça dos cadáveres.

Rihan me conta os planos de um dia estudar fora de Gaza, ignorando por um instante o bloqueio israelense que impede há sete anos a sua saída desse estreito de terra.

SEM TABULE

O cerco israelense e o governo desastroso da facção palestina Hamas, que não reconhece a existência de Israel, arruinaram esta região.

Passo, entre construções destruídas, por um cinema na cidade de Gaza --quase irreconhecível pelo tempo de desuso.

Em guerra ou na paz, não há opção de entretenimento. Ouvir música é considerado, pelo Hamas, um costume ocidental. A cozinha é um de seus últimos prazeres.

A culinária de Gaza é conhecida pela variedade de peixes e de frutos do mar, mas é a "salada de Gaza", uma espécie de vinagrete apimentado, que abre o paladar em sua mesa.

Insisto, porém, em pedir um prato de tabule. Em todas as noites, o garçom do hotel Al-Deira me diz que a salada que leva alface, tomate e trigo não está disponível. Antes de partir, lhe pergunto a razão da negativa. Todo restaurante árabe tem tabule, penso. Ele dá de ombros. "Mas estamos em guerra. Não temos os ingredientes."


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