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Ilustrissima

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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

O Pintassilgo

DONNA TARTT

2. "Não me diga", disse meu pai, quando chegou na casa dos Barbour na manhã seguinte pra me pegar de táxi, "que você vai carregar essa merda toda no avião". Pois eu tinha mais uma mala ao lado daquela com a pintura, a que tinha planejado levar a princípio.

"Acho que vai ultrapassar o limite de bagagem", disse Xandra, um pouco histérica. Em meio ao calor venenoso da calçada, eu podia sentir o cheiro do spray de cabelo dela de onde eu estava. "Eles só te deixam levar alguns quilos."

A sra. Barbour, que tinha descido até o meio-fio comigo, disse suavemente: "Ah, ele não vai ter problema com estas duas. Vivo ultrapassando o limite".

"Sim, mas isso custa dinheiro."

"Na verdade, acho que vão achar bem razoável", disse a sra. Barbour. Embora fosse cedo e ela não estivesse de joias ou batom, de alguma forma, mesmo de sandália e com um vestido de algodão simples, ela conseguia passar a impressão de estar impecavelmente arrumada. "Talvez tenha de pagar vinte dólares a mais no balcão, mas isso não deve ser um problema, não é mesmo?"

Ela e meu pai se encararam feito dois gatos. Então meu pai desviou o olhar. Eu estava um pouco envergonhado da jaqueta esportiva dele, que me fazia lembrar de sujeitos retratados no "Daily News" sob suspeita de extorsão.

"Você devia ter falado pra mim que tinha duas malas", disse, carrancudo em meio ao silêncio (bem-vindo para mim) que se seguiu à útil observação dela. "Não sei se vai caber isso tudo no porta-malas."

Parado no meio-fio, com o porta-malas do táxi aberto, quase cogitei deixar a mala com a sra. Barbour e telefonar mais tarde pra contar o que ela continha. Mas, antes que eu pudesse me decidir, o taxista russo de costas largas tinha tirado a mala de Xandra do porta-malas e colocado as minhas lá dentro, que "ocom alguns empurrões e socos"o couberam.

"Tá vendo? Não são muito pesadas", disse ele, fechando o porta-malas, secando a testa. "Tecido maleável!"

"Mas e a minha mala de mão?", disse Xandra, parecendo em pânico.

"Sem problemas, madame. Pode ir no banco da frente comigo. Ou atrás com você, se preferir."

"Tudo certo, então", disse a sra. Barbour, inclinando-se para me dar um beijo rápido, o primeiro desde que eu tinha chegado, um beijo no ar de senhoras-que-almoçam-fora que cheirava a hortelã e gardênias. "Adeusinho, pra vocês todos", disse ela. "Façam uma ótima viagem, tá bem?" Andy e eu já tínhamos nos despedido no dia anterior; embora eu soubesse que ele estava triste por eu ir embora, ainda assim me magoou o fato de ele não ter ficado pra me ver partir, e ido com o resto da família pra casa supostamente detestada no Maine. Quanto à sra. Barbour, ela não parecia particularmente abalada por estar me vendo pela última vez, embora eu me sentisse péssimo por ir embora.

Seus olhos cinzas, nos meus, eram claros e frios. "Muito obrigado, sra. Barbour", falei. "Por tudo. Diga a Andy que mandei um tchau."

"Certamente direi", disse ela. "Você foi um hóspede excelente, Theo." Ali, na névoa de calor vaporosa da manhã da Park Avenue, continuei segurando a mão dela por mais um instante, com a leve esperança de que me dissesse pra entrar em contato se precisasse de alguma coisa, mas ela apenas disse: "Boa sorte, então", e me deu outro beijinho frio antes de se afastar.

3. Não entrava realmente na minha cabeça que eu estava saindo de Nova York. Em toda a minha vida nunca tinha ficado longe da cidade por mais que oito dias. No caminho para o aeroporto, olhando pela janela para outdoors anunciando casas de striptease e escritórios de advocacia especializados em danos morais que eu dificilmente veria tão cedo, um pensamento apavorante me provocou um calafrio. E quanto à inspeção de segurança? Eu não tinha viajado muito de avião (apenas duas vezes, e uma delas quando estava no jardim de infância), e não sabia direito o que uma inspeção de segurança envolvia. Raio-X? Revista de bagagem?

"Será que abrem tudo no aeroporto?", perguntei, com uma voz tímida. E então perguntei de novo, porque ninguém pareceu me ouvir. Eu estava sentado no banco da frente, para assegurar a privacidade romântica de meu pai e Xandra.

"Ah, com certeza", disse o taxista. Ele era um russo grandalhão de ombros largos: feições grosseiras, bochechas suadas e vermelhas, feito um halterofilista que engordou. "Quando não abrem, eles passam no raio-X."

"Mesmo se eu despachar?"

"Ah, sim", disse ele, num tom tranquilizador. "Estão de olho em explosivos, conferindo tudo. Bem seguro."

"Mas"¦" Tentei pensar em algum modo de formular a per- gunta sem me comprometer, mas não consegui.

"Não se preocupe", disse o taxista. "Muita polícia no aeroporto. E três ou quatro dias atrás? Bloqueios na estrada."

"Bem, só sei que mal posso esperar pra sair desta porra de cidade", disse Xandra com sua voz rouca. Por um instante perplexo, achei que ela estava falando comigo, mas quando olhei pra trás vi que estava virada pro meu pai.

Ele pôs a mão no joelho dela e disse alguma coisa baixo demais pra que eu ouvisse. Meu pai estava usando seus óculos de sol coloridos, inclinando-se com a cabeça caída pra trás no assento, e havia algo de relaxado e juvenil no seu tom monótono, na tal coisa secreta que se passava entre eles enquanto apertava o joelho de Xandra. Desviei o olhar e olhei para fora, para a terra de ninguém passando rápido: prédios compridos e baixos, bodegas e oficinas, revendas de carros cozinhando no calor da manhã.

"Sabe, eu não me importo com setes no número do voo", Xandra estava dizendo baixinho. "São os oitos que me deixam apavorada."

"Sim, mas oito é um número da sorte na China. Dá uma olhada no painel internacional quando chegarmos no McCarran. Todos os voos vindo de Pequim são oito-oito-oito."

"Você e sua sabedoria chinesa."

"Padrões de números. É tudo energia. O encontro do céu e da terra."

"O céu e a terra. Você fala como se fosse mágica."

"E é."

"Ah é?"

Eles estavam sussurrando. No espelho retrovisor, seus rostos tinham uma expressão patética e pareciam muito juntos; quando percebi que estavam prestes a se beijar (coisa que ainda me chocava, não importa quantas vezes eu os tivesse visto fazer), virei rigidamente a cabeça para a frente. Ocorreu-me que, se eu já não soubesse como minha mãe tinha morrido, nada no mundo me faria acreditar que eles não a tinham matado.

4. Enquanto esperávamos pra pegar nossos cartões de embarque eu estava teso de medo, certo de que os seguranças abririam minha mala e descobririam a pintura bem ali, na fila do check-in. Mas a mulher mal-humorada com o corte repicado de cujo rosto ainda lembro (estava rezando pra que não tivéssemos de passar por ela quando chegasse a nossa vez) colocou minha mala na esteira mal erguendo os olhos.

Enquanto eu via a mala balançar pra longe, na direção de funcionários e procedimentos desconhecidos, senti-me cercado e apavorado com a pressão dos estranhos "oexposto também, como se todo mundo estivesse me olhando. Eu não ficava no meio de uma multidão tão densa nem tinha visto tantos policiais num só lugar desde o dia em que minha mãe morrera. Militares com rifles na mão estavam postados junto aos detectores de metal, imóveis em seus uniformes camuflados, os olhos frios percorrendo a multidão.

Mochilas, pastas, sacolas de compras e carrinhos de bebê, cabeças balançando pelo terminal até onde alcançava minha visão. Arrastando-me pela fila de inspeção, ouvi alguém gritar "omeu nome, pensei. Fiquei paralisado.

"Vai logo, vai logo", disse meu pai, pulando atrás de mim num pé só, tentando tirar seu mocassim, dando-me uma cotovelada nas costas, "não fique aí parado, você está atrasando a fila toda, porra"¦"

Atravessando o detector de metais, mantive os olhos fixos no carpete "orígido de medo, esperando que a qualquer momento uma mão pousasse no meu ombro. Bebês choravam. Idosos passavam devagar em carrinhos motorizados. O que eles fariam comigo? Será que eu conseguiria fazê-los entender que não era bem o que parecia? Imaginei uma sala de blocos de concreto como nos filmes, portas fechadas, policiais furiosos em mangas de camisa, pode esquecer, garoto, você não vai a lugar algum.

Uma vez tendo passado pelos seguranças, no corredor ecoante, ouvi passos distintos e decididos logo atrás de mim. Novamente parei.

"Não me diga", começou meu pai, com um revirar de olhos exasperado, "que você esqueceu alguma coisa."

"Não", falei, olhando em volta. "Eu"¦" Não havia ninguém atrás de mim. Passageiros corriam por todos os lados.

"Puta merda, ele tá branco que nem papel", disse Xandra. Para meu pai, ela disse: "Ele está bem?".

"Ah, ele vai ficar bem", respondeu meu pai enquanto retomava o trajeto pelo corredor. "Depois que chegar no avião. Foi uma semana difícil pra todo mundo."

"Putz, se eu fosse ele, também ficaria apavorada de entrar num avião", disse Xandra, sem rodeios. "Depois do que passou."

Meu pai "opuxando a mala de mão atrás de si, que minha mãe tinha comprado pra ele de aniversário vários anos antes"o parou de novo.

"Pobrezinho", disse, surpreendendo-me com seu olhar de compaixão. "Você não está com medo, está?"

"Não", respondi, rápido demais. A última coisa que eu queria era chamar a atenção de alguém ou deixar transparecer um quarto que fosse da minha inquietação.

"Xandra?", disse meu pai, erguendo o queixo. "Por que você não dá pra ele uma daquelas"¦ você sabe."

"Pode deixar", disse Xandra, parando pra pegar algo na bolsa, fazendo surgir duas pílulas grandes e brancas em forma de projétil. Uma ela colocou na mão estendida do meu pai, a outra deu pra mim.

"Obrigado", disse meu pai, guardando-a no bolso da jaqueta. "Vamos arranjar alguma coisa pra tomar com elas. Guarda isso aí", disse ele para mim enquanto eu erguia a pílula entre o polegar e o indicador e me admirava com o tamanho dela.

"Ele não precisa de uma inteira", disse Xandra, agarrando o braço do meu pai enquanto se inclinava de lado pra ajustar a correia da sandália de plataforma.

"Verdade", disse meu pai. Pegou a pílula de mim, dividiu-a habilmente ao meio e guardou a outra metade no bolso da jaqueta esportiva enquanto caminhavam à minha frente, puxando as malas atrás de si.


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