Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Sobre ruínas silenciosas

JULIÁN FUKS

Mas há pesares que não sucumbem a argumentos, há dores que não se exageram. Há histórias que não se inventam à mesa, entre goles e garfadas, entre papos quaisquer, histórias que recusam a proximidade com a leveza, que não se prestam à ruminação corriqueira, às frases diárias. Há casos que não habitam a superfície da memória e que, no entanto, não se deixam esquecer, não se deixam recalcar. No espaço de uma dor cabe todo o esquecimento, diz um verso sobre estas coisas incertas, mas os versos nem sempre acertam. Às vezes, no espaço de uma dor cabe apenas o silêncio. Não um silêncio feito da ausência das palavras: um silêncio que é a própria ausência.

Não lembro quando ouvi pela primeira vez o nome de Marta Brea. É provável que não tenha percebido o peso investido no nome, que tão cedo não tenha entendido o que ele representava. Por um tempo há de ter sido apenas um nome antigo, de uma amiga argentina da minha mãe que não frequentava a nossa casa, que dela se afastara sem motivo. Foi por algum comentário eventual da minha irmã, emulando decerto um tom mais carregado, que descobri que ela não era uma amiga como as outras, distanciada pelo tempo, pelo exílio, pelo espaçamento gradual das cartas até que não restasse nenhum contato. Sem precisão apreendi que daquela amiga não havia cartas, que nunca houve cartas, que um rótulo se imprimia em vermelho sobre seu nome: Marta Brea, desaparecida.

Era colega da minha mãe no hospital de Lanús, hospital de que tantos se orgulhavam, enclave da luta antimanicomial na Argentina, realidade e símbolo dessa luta que as duas travavam com entusiasmo. Um ano antes o diretor de psiquiatria fora afastado, por uma ordem tão obscura quanto incontestável, e num processo interno minha mãe havia sido escolhida para assumir seu cargo, enquanto Marta coordenaria o setor de adolescentes. Nesse ano a afeição que ambas dispersavam enfim se condensou em amizade. Iam juntas no longo trajeto até Lanús, voltavam juntas, trocavam confidências que em outras épocas seriam mansas, mas que agora lhes rendiam um amplo espectro de cumplicidades. No relato do nascimento do meu irmão constava seu nome: Marta havia sido a primeira a visitá-lo em casa.

A última vez que minha mãe ouviu sua voz foi numa reunião do conselho diretivo, enquanto debatiam problemas menores, e alguns minutos depois, reunião interrompida por alguém que a chamava para uma consulta rápida, a estridência inesperada de seus gritos atravessando os corredores, varando as paredes, percutindo os tímpanos e a memória de quem ali aguardava sua volta. Correndo até a porta do hospital, ainda pôde testemunhar a brusquidão com que a empurravam e a enfiavam num carro sem placa, a partida súbita e singular daquele carro se repetindo tantas vezes ante seus olhos. Pode ser finito nosso acervo mental de imagens: a cada desaparecimento, a cada sequestro noticiado, minha mãe vê, ou pensa ver, diz ver esse mesmo carro em seu arranque drástico, seu sumiço na primeira esquina, o rastro dos pneus no asfalto.

Não sei quantas horas passaram até que minha mãe estivesse sentada na sala da família Brea, sala suntuosa de aspecto aristocrático, expressando sua aflição à irmã de Marta, suplicando que tomasse uma medida, que fizesse alguma coisa, ouvindo a resposta que nunca imaginara: ela se meteu com quem não devia, mexeu com quem não devia, que sofra agora o castigo que lhe cabe. Só lamento a tristeza do meu pai, sua decepção com a filha tão bem-educada, emendou aquela jovem em seu cinismo espontâneo, quase incalculado, e à minha mãe só coube calar o desgosto e guardar de empréstimo, pela amiga, aquela mágoa suplementar.

Não sei quantos dias passaram até que estivesse na sala da delegacia, apelando ao chefe de polícia que era velho amigo de seu cunhado, amigo de infância do meu tio entrerriano. Sorria, o homem de gestos contidos e rosto amigável, sorria e tentava acalmá-la, que ficasse tranquila, bastava um breve instante para que averiguasse. Quando voltou, seu rosto se convertera numa carranca imperturbável e a voz soava grave: quais as suas relações com essa mulher de nome Marta? Com que intimidade a senhora a conhece? Costuma frequentar, por assim dizer, seus mesmos círculos sociais? Alerta à metamorfose, minha mãe se obrigou a engolir a amizade, a alegar apenas o vínculo profissional, vinha como diretora do hospital preocupada com a colega de trabalho. Pois então lhe recomendo, o homem já a empurrava porta afora, que esqueça seu nome e nunca mais pergunte nada.

Minha mãe não esqueceu seu nome. Jamais esqueceu seu nome, ainda que tão logo o exílio ampliasse o lapso, ainda que, em poucos meses, rudes fronteiras as separassem. Minha mãe não aceitou sua falta, apegando-se a qualquer notícia vaga que a alcançasse, uma mulher que estivera na mesma cela que Marta, que destacava sua bravura, sua solidariedade, uma mulher que existia e estava viva e tinha respostas. Minha mãe não deixou de perguntar, mas o silêncio foi se tornando mais frequente que as palavras e aos poucos aquela ausência ocupou o espaço que a amiga ocupara, roubando-lhe o nome, deformando na memória seus traços.

Só quando recebeu aquela carta, 34 anos mais tarde, a carta que convertia Marta Brea em Martha María Brea, vítima do terrorismo de Estado da ditadura civil-militar, jovem psicóloga cujos restos agora identificados ratificavam seu assassinato em 1º de junho de 1977, 60 dias depois de seu sequestro no hospital, só quando recebeu aquela carta pôde vasculhar em seu íntimo as ruínas calcificadas do episódio, pôde enfim tocá-las, movê-las, construir com o silêncio das ruínas, e com seus traços deformados, o discurso que proferiu em sua homenagem. Nas páginas desse discurso conheci a história que faltava, mas conheci também algo mais: o luto discreto que havia décadas minha mãe vivenciava, o sentido rarefeito que essa morte incompleta instaurara em sua realidade. Nas páginas desse discurso conheci algo mais: a atrocidade de um regime que mata e que, além de matar, aniquila os que cercam suas vítimas imediatas, em círculos infinitos de outras vítimas ignoradas, lutos obstruídos, histórias não contadas --a atrocidade de um regime que mata também a morte dos assassinados.

Não conheci Marta Brea, sua ausência em mim não mora. Mas sua ausência morava em nossa casa, e sua ausência mora em círculos infinitos de outras casas ignoradas. Foram muitas Martas, foram 30 mil Marthas na Argentina, foram Martas incontáveis por toda parte, diferentes nos restos desencontrados, nos traços deformados, nas ruínas silenciosas. Em tudo diferentes: iguais apenas no pesar que não sucumbe, no papo que não se inventa à mesa, na dor que não se exalta. Marta Brea era o nome que tinha em nossa casa o holocausto, outro holocausto, mais um entre muitos holocaustos, e tão familiar, tão próximo.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página