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Identidade cultural

Relações perigosas

Em busca de um meridiano próprio

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

resumo

Livros que tratam das relações culturais Brasil-Argentina ensejam ensaio sobre a dificuldade histórica de um intercâmbio latino-americano consistente. Para ensaísta, falta que a região conceba a possibilidade de um meridiano cultural próprio, que não dependa de ex-metrópoles coloniais ou dos Estados Unidos.

A publicação recente de livros que lidam com as relações perigosas entre Brasil e Argentina permite questionar um dos lugares-comuns mais repetidos nessa história. A tarefa não é fácil, pois ele é reiterado mesmo por aqueles cujas ações parecem contradizê-lo.

Começo pelo livro organizado por Patricia Artundo, "Correspondência Mário de Andrade & Escritores/Artistas Argentinos" [trad. Gênese Andrade, Edusp, R$ 83, 416 págs.].

Destaque-se a excelência do trabalho, parte da coleção Correspondência de Mário de Andrade. Além de notas esclarecedoras do contexto de época, Artundo acrescenta tanto uma cronologia do contato de Mário com seus pares quanto uma pequena biografia de cada um deles. O leitor dispõe assim de todos os dados para radiografar o problema-chave.

Dilema traduzido pelo escritor Pedro Juan Vignale em carta de 4 de outubro de 1926, na qual menciona um projeto do brasileiro: "Quanto à Antologia Argentina' de que o Sr. me fala, me alegra muitíssimo sua realização: vivemos muito perto uns dos outros mas nos desconhecemos que é uma maravilha!".

Em 26 de julho de 1943 outra carta foi enviada de Buenos Aires, assinada a quatro mãos, por Oscar Carlos Pécora e Ulises Branco. Os dois editores propunham um projeto ousado: fomentar o "pan-americanismo artístico".

Mário deveria redigir um ensaio sobre a pintura brasileira e a iniciativa foi justificada com o raciocínio de sempre: "Desgraçadamente, artisticamente nos ignoramos em todos os países que nos rodeiam e cremos própria a ocasião para dar fim à situação. A atenção sobre as artes espaciais europeias se dispersou; não seria o mais adequado atraí-la para nós?".

Ora, o propósito das duas cartas deveria relativizar a noção de mútua ignorância referida pelos missivistas.

Esforços semelhantes atravessam a correspondência organizada por Artundo.

O crítico literário Luis Emilio Soto, em carta de 16 de abril de 1931, proferiu autêntica profissão de fé: "A consciência americana lança chamados e faz sinais de socorro, aqui e ali, que é preciso combinar, para orientar as forças dispersas e dar-lhes um sentido de ação, em meio ao caos".

O pintor Emilio Pettoruti, destacado nome das artes plásticas latino-americanas, assumiu em novembro de 1930 a direção do Museo Provincial de Bellas Artes de La Plata. De imediato, buscou contar com a colaboração do brasileiro. Sua visão era ambiciosa: "Este Museu quer conformar-se a um conceito moderno e americano, o qual consiste em fazer de um museu de arte uma entidade vivente, docente e cultural". Pettoruti encontrou a fórmula ideal para realizar a ideia: "Estamos solicitando a cooperação de todos os americanos valentes e talentosos".

O compositor e musicógrafo Vicente Forte escreveu ao brasileiro em 8 de março de 1933. O ideal pan-americano reaparece: "O prazer com que eu uniria meus esforços aos dos brasileiros, em prol de uma arte que despertasse nos grandes centros culturais da velha Europa, um interesse sincero por tudo [o] que de belo há em nossa América".

Poderia multiplicar citações- irmãs, porém o lugar-comum já se encontra minado; afinal, não faltaram iniciativas para estabelecer um diálogo produtivo entre escritores e artistas latino-americanos.

VAIVÉM

Venho, então, ao mais importante livro dessa série, "Fervor das Vanguardas" [Companhia das Letras, R$ 70, 376 págs.], cujos ensaios coroam a rica trajetória de Jorge Schwartz. Seu trabalho pode ser definido como uma poética do vaivém. Inicialmente, entre literatura e artes plásticas. Ademais, "o vaivém é também geográfico, percorrendo espaços entre São Paulo, Buenos Aires e Montevidéu". O autor oferece a arqueologia de uma interlocução geralmente negligenciada --ou simplesmente desconhecida.

Schwartz reconstrói um fascinante projeto do multiartista argentino Xul Solar, o desenvolvimento de uma escritura pictórica desdobrada na invenção de um idioma --"o neocriollo': uma língua aglutinante, mistura de espanhol e de português, pensada em função de uma utopia de confraternização latino-americana".

Circunstância semelhante se verifica na música popular, segundo a pesquisa de Mauro Mendes Braga. Em "Tango" [ed. UFMG, R$ 65, 498 págs.], ele mapeia a presença da música portenha no mercado brasileiro --"desde os anos de 1930 o tango ocupava posição de destaque no rádio e na indústria fonográfica brasileira". De igual sorte, "as temporadas de artistas brasileiros em Buenos Aires não foram menos expressivas" --e com cantores do naipe de Carmen Miranda, Francisco Alves, Wilson Batista.

Problematizar o lugar-comum permitiu a Sergio Miceli e Heloisa Pontes organizar o volume "Cultura e Sociedade - Brasil e Argentina" [Edusp, R$ 74, 426 págs.]. Dois ensaios desenvolvem uma abordagem comparativa de grande interesse. Em "Vanguardas em Retrocesso", Miceli estuda os limites das experimentações de artistas constrangidos pelo êxito da "coalizão conservadora vitoriosa no rio da Prata e no Rio de Janeiro". Luiz Carlos Jackson e Alejandro Blanco, no texto "Sociólogos e Ensaístas no Brasil e na Argentina (1930-1970)", estudam a emergência da sociologia nos dois países.

E não é tudo.

Vale a pena mencionar iniciativas contemporâneas que atam as pontas desse complexo enredo. Duas editoras argentinas --Corregidor e Adriana Hidalgo-- têm feito um importante trabalho de promoção da literatura e da crítica literária brasileiras.

A editora Alfaguara acaba de lançar uma iniciativa que evoca as cartas de Mário e seus pares: publicar antologias de contos, num "gesto de assentimento mútuo e de tradução recíproca" --na reflexão dos editores. Dois livros foram lançados: "Contos em Trânsito: Antologia da Narrativa Argentina"; e "Cuentos en Tránsito: Antología de la Narrativa Brasileña".

Há mais.

A pesquisadora Julia Tomasini desenvolve o blog Papeles Sueltos "" Literatura brasileña contemporánea en español (brasilpapeles sueltos.com). O escritor Joca Reiners Terron coordena a coleção Otra Língua, para a Rocco. Graças a sua visão, um dos mais originais autores do século 20 começa a circular em português: o uruguaio Mario Levrero (1940-2004).

Um grupo de pesquisadores edita há anos a revista Grumo, ponto de encontro intelectual e artístico.

Por fim, ressalto a tarefa do tradutor exercida pelo poeta Carlito Azevedo, cujo trabalho tem divulgado a poesia hispano-americana atual, assim como a ficção de Paloma Vidal, cujo projeto avizinha as duas experiências culturais. Aliás, Vidal dirige a série "Entrecríticas" (da mesma Rocco), que, além de "pensar a literatura em suas conexões com outras práticas artísticas", pretende ser uma "coleção de autores latino-americanos".

PARADOXO

Contudo, não se deve passar do questionamento do lugar-comum à falsa imagem de um intercâmbio sistemático. Ao fim e ao cabo, não se pode evitar o paradoxo: apesar desses gestos isolados, sua soma nunca chegou a estimular um movimento constante e transformador.

Por quê?

Proponho uma hipótese.

Penso na célebre polêmica sobre o "meridiano cultural" da América Latina --ou latina, se recordarmos seu primeiro emprego em espanhol, no poema "Las Dos Américas", do colombiano José María Torres Caicedo, no qual se opunha a "América latina" à "América anglosajona". (O poema foi publicado em 1857, em "El Correo de Ultramar", jornal editado em Paris --onde mais no século 19?)

Em 1927, o poeta vanguardista espanhol Guillermo de Torre, em atitude muito pouco iconoclasta, propôs que Madri constituía o meridiano cultural da América Hispânica. Quase não é preciso aludir às previsíveis reações estimuladas por esse anacronismo nada deliberado. As menções recorrentes à "consciência americana" na correspondência de Mário de Andrade também representam uma resposta à ideia.

Durante o século 19, e até os anos 1930, o meridiano cultural tinha endereço fixo: Paris. A partir do final da década de 1930, transferiu-se para Nova York. Hoje em dia, nas universidades latino-americanas, a caricatura involuntária desse processo consuma-se na hegemonia dos estudos culturais de extração norte-americana.

Eis o ponto cego dos utópicos projetos "pan-americanistas". Como os personagens do autor de "A Tempestade", a fim de reconhecer nosso objeto de desejo, precisamos do olhar do outro. Sem dúvida, ninguém escapa à mediação da alteridade. Porém, à diferença de Calibã, somos antropófagos de eterna primeira dentição: aprendemos a linguagem de Próspero não para amaldiçoá-lo, mas para apostar numa modesta inserção num nicho praticamente invisível do mercado artístico e acadêmico contemporâneo.

O paradoxo, portanto, se dissolve na mera constatação: o meridiano que define nossos interesses sempre foi determinado "ab alio", a partir do outro. O ciclo se fecha e voltamos ao ponto de partida identificado pelo mexicano Edmundo O'Gorman em 1958, num ensaio em que rigor analítico e imaginação crítica se dão as mãos: "La Invención de América".

(Pois é: ainda não atinamos com a possibilidade de imaginar um meridiano próprio.)

Nota: Leia texto sobre a coleção Otra Língua na pág. 6 e trecho de romance inédito da série à pág. 8


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