Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Dois contos

ADOLFO BIOY CASARES TRADUÇÃO SÉRGIO MOLINA

Orpheu

Com o coração dilacerado, Orfeu viu Eurídice desaparecer no abismo. Entretanto (conta Virgílio), ele percebeu a terrível importância desse momento e quis dizer muitas coisas: "multa volentem dicere". Outros autores recordam as palavras que teria pronunciado o herói; seriam estas: "Desde o instante em que deixamos de ver uma pessoa, ela entra no passado. Todo passado está igualmente longe. Se eu espiasse seus profundos corredores, antes de encontrar Eurídice, contemplaria talvez o rapsodo Anfião, que conseguiu verdadeiros prodígios com a lira, ou surpreenderia Mercúrio no processo de inventar a música, ou me deslumbraria com o sol da primeira manhã". Porque seu amor era muito grande, Orfeu não esmoreceu, e os deuses, que premiam a perseverança, deixaram-no chegar até as portas do passado. Para cruzá-la devia-se adivinhar uma fórmula. O herói exclamou: "Todo passado está igualmente perto". (Varões antigos lhe disseram que as coisas, como o deus Jano, têm duas faces e que o último termo é, em certo sentido, o primeiro). Empurrou a pesada porta. Abriu. Esperando-o estava Eurídice.

Na torre

Para esquecer miss Hinton (para esquecer o inesquecível), o velho poeta irlandês deixou a Inglaterra. Na impávida luz do camarote, no Byzantium, pensou a noite inteira na mulher amada: ela gostava bem pouco dele; nem sequer o conhecia seriamente; nem sequer tinha lido seus livros"¦ De manhã desembarcou em Dublin. "Acaso a procurei devidamente?", refletiu. "Acaso a encontrei?" No solitário trem, continuou a pensar: "Ninguém é um só. Sem dúvida nela existe a moça que está destinada a mim e que não encontrarei nesta vida". Depois o lago apareceu sob uma chuva tênue e opaca, e sobre a cabeça do poeta voaram trinta e sete cisnes. Bem avançado o dia, chegou à porta da torre. Um raio de sol, como uma pálida espada, atravessou as nuvens e ensaiou uma espécie de anacrônico amanhecer. A caseira lhe entregou um telegrama. O poeta o leu, deixou-o cair e, sem responder às perguntas da velha, abriu a porta e subiu correndo a interminável escada de caracol, e muitas vezes pensou que ia desfalecer. Com a vista enevoada, extenuado, enlevado, chegou ao topo da torre, onde miss Hinton o esperava tomando chá, no jardim de sua casa, em Westmorland, e também correndo descalça na areia, em uma tarde de outono, contra um céu de furiosas gaivotas, e cozinhando, na casa de umas amigas, o célebre Plum Pudding Hinton (receita de sua avó paterna), e dançando, encantadoramente fantasiada de lavadeira, em uma festa beneficente, e lendo risonhamente com sua amiga miss Farr um poema que ele lhe dedicara, e guardando (sozinha, horas depois), em um cofre de palha com forro de seda violeta, esse mesmo poema, e soprando bolhas de sabão, e fazendo exercícios respiratórios, e expirando e sorrindo, na companhia do piloto norte-americano Peter de Paola, ao volante de um automóvel, para uma fotografia publicitária, e tossindo, congestionada pelo esforço de nascer, e dando, ao filho da governanta, sua primeira laranjada com óleo de rícino, e assistindo, com um grupo de jovens da sociedade, à primeira exposição londrina de arte cubista, e jazendo em seu ataúde, e recebendo o segundo prêmio de "deck- tennis", a bordo do Berengaria, e gritando apavorada, na rua, de noite, enquanto um letreiro luminoso anunciava: "Florio's Café", e caminhando por uma alameda em Westmorland"¦ A caseira recolheu o papel, que um golpe de vento carregara até o maciço de agapantos. Leu: "Lamentamos informar que Barbara Hinton morreu ontem à noite".


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página