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Entrevista

HANS ULRICH GUMBRECHT

Por um novo tempo

A latência do passado e a ameaça do futuro

RESUMO Americano nascido na Alemanha do pós-Guerra, o crítico literário Hans Ulrich Gumbrecht tem dois títulos lançados no país. Em ambos frisa a importância do contexto histórico, seja para a compreensão da inserção da literatura em seu tempo, seja para o entendimento analítico do presente, tema principal desta entrevista.

MORRIS KACHANI

MAis de 60 vezes calcula Hans Ulrich Gumbrecht já ter vindo ao Brasil. Presença requisitada por instituições acadêmicas, o crítico, ensaísta e professor de literatura da Universidade de Stanford acaba de ter duas obras lançadas no país.

Em "Atmosfera, Ambiência, Stimmung: Sobre um Potencial Oculto da Literatura" [trad. Ana Isabel Soares, Contraponto, R$ 38, 176 págs.], Gumbrecht analisa os nexos entre o contexto em que são criados textos literários e, por outro lado, as realidades que a própria literatura cria.

"Eu defino 'Stimmung' como o toque mais leve da atmosfera física no corpo humano --como o clima, o som ou a música. Um toque real, físico, que, por motivos para nós desconhecidos, detona determinados estados psicológicos", diz o autor, em entrevista à Folha.

No livro, ele afirma que se concentrar "nas atmosferas e nos ambientes permite aos estudos literários reclamar a vitalidade e a proximidade estética que, em grande parte, desapareceram".

O autor critica a posição asséptica de parte da academia, que renega o contexto biográfico do autor na configuração da atmosfera e da ambiência de uma obra.

"Eu sempre (e em geral) achei absurda essa abstinência' das informações biográficas na literatura", afirma Gumbrecht. "É uma maneira secreta de manter a supremacia da interpretação dos críticos sobre o que os autores pensavam sobre seus textos."

Seu interesse pela atmosfera encontra eco num contexto histórico em especial, tema de seu livro que lhe é mais caro, entre os quase 20 que já publicou. "Depois de 1945: Latência como Origem do Presente" [trad. Ana Isabel Soares, ed. Unesp, R$ 48, 357 págs.] é uma incursão ensaística sobre o impacto das feridas abertas pela Segunda Guerra, a partir de uma perspectiva pessoal.

Gumbrecht nasceu na Alemanha em 1948. Na infância, a pessoa que mais adorava era o avô, sem saber que este cerrou fileiras com o nazismo. Seu filho mais velho pertence ao alto comando das Forças Aéreas alemãs, sucessoras da Luftwaffe. A filha mais nova, ele conta, visita Israel frequentemente e tem preferência por namorar judeus.

Gumbrecht rompe com a visão historicista hegeliana e propõe um novo tempo, no qual "o futuro já não será vivenciado como um horizonte aberto de possibilidades entre as quais podemos escolher, mas sim como uma multiplicidade de ameaças que se aproximam".

Recentemente, o professor visitou novamente o Brasil --país que considera hoje "praticamente de Primeiro Mundo". "Já está na hora de abandonar essa ideia de que o país tem que ser a primeira nação mundial do futebol, toda aquela coisa constrangedora de cantar o hino nos estádios, ou Neymar sendo tratado como vítima do Holocausto depois de ter recebido uma falta completamente normal".

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Folha - Você vive nos Estados Unidos desde 1989. Qual é seu sentimento com relação à Alemanha?
Hans Ulrich Gumbrecht - Nasci em junho de 48 na Alemanha; é um destino bem complicado. Um dos filósofos mais interessantes da atualidade, Peter Sloterdijk, acha que minha escrita é sobre o épico e o trágico de nossa geração, tanto do ponto de vista alemão como ocidental. O trágico fica por conta do esforço de aclarar finalmente o passado, em um sentido hegeliano e até freudiano, para assim chegar a um futuro aberto. Mas logo se vê que o futuro não está aberto.
Nós, intelectuais nascidos naquele momento, tivemos a vontade de nos responsabilizar pelos crimes inauditos da Segunda Guerra, sem ter participado dela. Foi uma reação ao silêncio da geração anterior.
Desde criança, nunca me senti bem na Alemanha. Hoje, além de tudo, não gosto da "boa consciência" alemã. É o único país do mundo cujo monumento central da capital faz referência à maior vergonha do país, o Holocausto. Ao mesmo tempo, enxergo uma "boa consciência" pseudofilosemítica --embora crítica. Agora, nos protestos sobre Gaza na Alemanha, de repente, saíram à luz coisas não digeridas. Isso é preocupante.

Sua geração conseguiu clarear o passado?
A tese básica de "Depois de 1945" é a de que aquilo que víamos como falta de esclarecimento na verdade se configura já na emergência de um novo cronótopo, uma nova configuração de tempo. Não dá para deixar o passado para trás: ele se apresenta de forma invasiva, agressiva, é passado demais --daí sua latência. Mas a presença do passado não é realmente um problema; o problema é aquela ideia de que você precisa limpar o passado para ter um futuro aberto, e isso já não se dá.
Essa seria uma lógica historicista. A obrigação de esclarecer o passado continua existindo, mas o cronótopo do presente amplo não vai resultar aberto, pois o futuro hoje, por motivos que nada têm a ver com Holocausto, foi ocupado por ameaças que vão se aproximando, como o aquecimento global. A mentalidade ecológica nunca teria emergido num contexto historicista.

Qual seria o legado da Segunda Guerra a essa altura?
O legado é compreender que há uma visão diferente do mundo que emerge; a autorreferência vai mudando. Entre os desdobramentos de que trato no livro, estão os conceitos de "sem entrada" e "sem saída", utilizando "O Anjo Exterminador", de Luis Buñuel, como exemplo. No caso alemão, gosto de usar o conceito teológico de redenção, a promessa de que, após o sacrifício, o futuro vai estar certo. Não há temporalidade nesse sentido. Muita gente achou que depois da reunificação o legado da Segunda Guerra havia se encerrado, que o país havia pago pelos estragos da guerra e demonstrado boa vontade suficiente com Israel.
As bombas nucleares estão aí e vão ficar para sempre, a gente não vai conseguir esquecer. Assim como a industrialização da matança de pessoas. Nós, humanos, somos capazes disso e de coisas piores; os nazistas testaram os sistemas mais baratos e chegaram às câmaras de gás, ainda extraindo ouro dos dentes dos mortos.
Nesse sentido é inesquecível a palestra de Himmler em Potsdam, na qual o líder nazista defende que, para que o projeto se realize, é importante que os soldados continuem "limpos". Por limpos entenda-se não se emocionar positivamente nem negativamente. Todo o legado do Iluminismo, que até então parecia vigorar, caiu por terra. O Iluminismo nunca vai ser o que a gente pensava, há uma dialética da ambiguidade, e talvez o novo cronótopo seja uma reação pré-consciente a isso.

Seu livro dá a impressão de que a Segunda Guerra não acabou.
De todos livros que escrevi, este foi de longe essencialmente o mais importante pra mim. Não só pelas memórias de infância que nele descrevo. Sempre que pouso na Alemanha eu penso: "Este país está assombrado". Poderia se dizer que houve má sorte ou destino, mas foi lá que as coisas aconteceram. Nos começo dos anos 1930, Horkheimer, da Escola de Frankfurt, conduziu um estudo sobre antissemitismo na Europa. Concluiu que na Alemanha ele era mais fraco, e este justamente era o perigo --os alemães não terem muita consciência dele.

O que é a "boa consciência"?
Meus pais, por exemplo, diziam que não participaram ativamente da guerra; até hoje não sei. Atualmente a Alemanha se vê como um país de alta autoridade moral, com um discurso de quem já passou por duas guerras mundiais, que sabe o que é uma guerra e que, portanto, tem o direito de condenar Israel ou os Estados Unidos. Por exemplo, muita gente acha que é bom que um jornalista americano tenha sido decapitado pelo Exército Islâmico e condena Washington por não ter pago o resgate.

Onde entra a latência?
A latência é uma coisa que sempre está lá, você sabe que está, mas não sabe nem onde nem o que é. Uma metáfora para ela seria a do passageiro clandestino, que nunca fica completamente à vontade.

Como enxerga a ação israelense em Gaza?
Antes de mais nada, é preciso dizer que a criação do Estado de Israel é perfeitamente legítima. Segundo meu entendimento, a agressividade no seu nascimento não foi dos judeus. Acho a ideia de posse de terras dos palestinos completamente idiota, a Palestina não estava estabelecida na época. Era uma colônia britânica.
Então eu talvez tenha uma visão unilateral de simpatia por Israel, por causa do lugar em que nasci. Minha relação com os judeus não é normal, e a normalidade não se pode forçar. Mas também é por causa de minha interpretação política que estou muito do lado de Israel. Um palestino pode viver perfeitamente como cidadão israelense enquanto um judeu não o pode em Gaza. Os craques da seleção de Israel, que não é ruim, são todos palestinos.
O único problema é que, se Israel fosse um Estado completamente secularizado --e a vida cotidiana por lá é bem secularizada--, talvez fosse melhor. Ter uma missão teológica na fundação de um Estado não ajuda nas negociações, e isso justifica uma religiosidade na ressonância palestina.
Gaza, sobretudo, representa um risco muito grande para Israel, Israel não aproveita nada. Manter Gaza encerrada não é um legado possível, Israel viveria muito melhor deixando o território.

Mas os direitos reclamados pelos palestinos não são legítimos?
Não sei, acho que dizer "esta é nossa terra" é uma ideia completamente romântica e antiquada. Pode existir a lei do mais forte. E Israel é mais forte, não só militarmente. As universidades são muito boas. Não é um Estado pacifista, não sou fã de Netanyahu. Mas, se as bombas israelenses são mais eficientes, não significa que Israel seja um Estado imoral.

E os Estados Unidos?
Minha simpatia para com os Estados Unidos tem a ver com uma queda que tenho pela ocupação americana durante minha infância. Foi tão bem executada que tenho uma simpatia primária pelos americanos. Como em qualquer passado nacional, há no americano várias complicações, Iraque ou Guantánamo que o digam.
Mas, na microssociologia, é um país superdemocrático, onde qualquer um é capaz de expressar concordância ou discordância, um país que, em teoria, nunca teve um projeto imperialista. Pode-se falar em uma hegemonia tão inteligente como do Império Romano, que tampouco tinha uma ideologia para si próprio. Existia um projeto de expansão, mas não um projeto de tornar o mundo todo romano.
Os americanos tiveram um papel importante na implantação das ditaduras latinas. Mas Jango tampouco foi tão fantástico, Salvador Allende foi uma catástrofe para o Chile e é tratado como um coitadinho. Qualquer chileno concorda que economicamente os anos Pinochet não foram tão ruins. E não houve resistência contra Lula, por exemplo.
Eu e a ex-secretária de Estado Condoleezza Rice somos amigos, embora eu não costume votar em seu partido. Vamos juntos a jogos de hóquei no gelo. Ela me disse que o colega mais admirado de seu tempo era Lula, até pessoalmente.

Lendo seus livros se percebe uma visão muito crítica sobre as ciências humanas, hoje.
A coisa que matou as ciências humanas foi o construtivismo de identidades dos anos 1990, aquela coisa de "qual é nossa contribuição?", de criar identidades comunitárias coletivas. São os projetos de identidades nacionais, construções sociais do mundo, uma banalização completa. Resultou numa produção muito banal, que não tem nada de errado, mas é tão banal. Estudar ciências humanas nesse contexto hoje nem é proveitoso, profissionalmente, nem é interessante.

Nós, intelectuais nascidos naquele momento, tivemos a vontade de nos responsabilizar pelos crimes inauditos da Segunda Guerra, sem ter participado dela

Um palestino pode viver perfeitamente como cidadão israelense enquanto um judeu não o pode em Gaza. Os craques da seleção de Israel são todos palestinos

A coisa que matou as ciências humanas foi o construtivismo de identidades dos anos 1990, aquela coisa de "qual é nossa contribuição?", de criar identidades coletivas


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