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Tinhorão de volta à roda

RESUMO O historiador José Ramos Tinhorão protagonizou refregas ao se posicionar contra movimentos, como a bossa nova e o tropicalismo, e ícones da música popular. Aos 86, distante do noticiário e preparando o 29º livro, o crítico marxista, que diz ter rompido com a vida burguesa nos anos 80, segue inquieto, amado e odiado.

FABIO VICTOR

SENTADO NUMA CADEIRA do boteco, as mãos espalmadas sobre os joelhos, José Ramos Tinhorão observa a roda de samba em homenagem aos seus 86 anos. O repertório daquele sábado se concentrou em Ismael Silva, o preferido do velho historiador e crítico.

É uma tarde abafada do mais quente verão da história de São Paulo, e a roupa do aniversariante --calça, camisa, sapatos e meias sociais-- destoa do clima instalado na calçada do bar da Vila Buarque, região central de São Paulo.

Destoar faz parte de sua natureza. Nos anos 1960, quando ganhou visibilidade nacional, Tinhorão menosprezava, em artigos na imprensa, a bossa nova que o Brasil e o mundo celebravam, algo que repetiria anos mais tarde com o tropicalismo ou qualquer manifestação que a seu ver maculasse ou macaqueasse a pureza da música produzida pelo povo.

Ali nasceu o rótulo de crítico radical marxista e nacionalista que, alimentado à farta pelo próprio, jamais se descolaria dele.

Quem passa pela festa não se dá conta de quem seja o homenageado. É compreensível. Faz pelo menos dez anos Tinhorão quase sumiu do noticiário. O isolamento é voluntário, pois ele continua lúcido, inquieto e prolífico.

Finaliza seu 29º livro, sobre as origens do congado, manifestação de ascendência africana que, entre os séculos 17 e 19, foi uma das festas mais populares do Brasil. No mês que vem, a editora 34, que concentra a maior parte de sua obra, lançará uma reedição de "Música Popular - Do Gramofone ao Rádio e TV" (1981), com texto revisto e um novo prefácio.

O homem que o ensaísta e músico José Miguel Wisnik já definiu como "o mais importante pesquisador de música popular no Brasil" se queixa de ser subvalorizado. Mas sua obra ganha cada vez mais respeito e tem admiradores mesmo entre jovens com idade para serem seus netos, como se pôde ver naquela tarde de festejo.

Equilibrando nos joelhos um exemplar de "História Social da Música Popular Brasileira" (ed. 34) de cujas páginas pulavam incontáveis post-its de cores berrantes, Elisa Meier Ferreira, bandolinista de 20 anos, sentou-se ao lado de Tinhorão. Viajara de Porto Feliz (a 118 km de São Paulo) só para tietá-lo, ao lado de suas irmãs Corina, 26, flautista, e Lia, 23, violonista. Elas formam o "Choro das 3", grupo dedicado ao gênero.

"Desde os 16 anos", disse Corina, "leio e admiro o Tinhorão". Os motivos ela vê resumidos no texto da contracapa do próprio "História Social" --um discurso pela valorização da identidade cultural e contra aqueles que, em busca de "apresentar-se como modernos", acabam parecendo "estrangeiros dentro de seu próprio país".

Tinhorão também é revisitado, nas novas gerações, por quem o critica. Revelada na cena musical paulistana em 2013, a banda Filarmônica de Pasárgada incluiu em seu álbum de estreia a canção "Enfartando Tinhorão", em que faz troça do personagem-título.

"Fiz esta canção pois me identifico musicalmente com o contrário do que Tinhorão sempre defendeu. É uma maneira bem-humorada de me contrapor às suas ideias. O admiramos como pesquisador e ao mesmo tempo discordamos de suas posições tão rígidas", explica o compositor Marcelo Segreto, 31.

ORIGENS A rigidez a que se refere o músico de certo modo se liga às origens de Tinhorão, nascido José Ramos, a 7 de fevereiro de 1928 em Santos, litoral paulista, primogênito de uma família de imigrantes ibéricos --o pai era português e a mãe, filha de espanhóis.

O pai foi garçom, vendeu bilhete de loteria e teve uma tinturaria, até se mudar com a família para o Rio, em 1937. Por exigência paterna, começou a trabalhar adolescente, antes de se formar em direito e jornalismo. Nunca exerceu a primeira profissão. Na segunda, começou em 1952, no "Diário Carioca".

Lá incorporaria à assinatura o apelido Tinhorão, nome de uma planta venenosa --contrariando o mito, a alcunha pela qual seria famoso não vem da peçonha que o caracterizou como crítico, mas de um chefe na Redação, que assim o chamou porque, do rapaz recém-chegado, só lembrava que tinha no sobrenome algo de vegetal.

Foi também lá que conheceu Janio de Freitas, hoje colunista da Folha. "Foi o meu primeiro amigo no Diário Carioca'. Já ali tinha vocação de intelectual, pesquisava literatura francesa do século 18. Era muito inteligente, muito reflexivo e analítico", conta Janio.

Ao liderar a reforma do "Jornal do Brasil", entre 1958 e 1959, que faria do periódico do Rio referência nacional, Janio convidou o amigo para ser redator. No "JB", Tinhorão fez-se pesquisador meticuloso e crítico musical ferino. Além de recuperar a memória de velhos sambistas --entrevistando nomes como Donga, João da Baiana e Pixinguinha--, passou a investigar as origens de manifestações da cultura popular urbana.

O crítico começou a apontar a "impureza" da bossa nova quando o movimento estourou, em 1962. Dessa rusga viria boa parte de sua fama e um grande número de desafetos, que só cresceram à medida que Tinhorão atacava a nata da MPB ascendente, com alvos que iam dos tropicalistas a Tom Jobim, passando por Chico Buarque e Paulinho da Viola.

Muitos reagiram, a começar por Caetano Veloso, que, em 1965, num texto publicado pela revista "Ângulos", da faculdade de direito da Universidade Federal da Bahia, definiu como "histéricos" os artigos de Tinhorão. Caetano voltaria a arengar com o crítico inúmeras vezes nas décadas seguintes.

Mas o contra-ataque mais pesado veio de Sérgio Cabral, pai do ex-governador do Rio. Num artigo para o semanário "O Pasquim" em 1976, intitulado "Tinhorão agente da CIA?", o jornalista e pesquisador musical recorria ao bom humor para fazer acusações sérias.

"Qualquer relatório sobre a CIA ensina que uma de suas táticas é infiltrar agentes em movimentos hostis ao Estados Unidos para que esses agentes não só recolham informações como também prejudiquem os próprios objetivos do movimento com atitudes radicais", diz o artigo. "Qualquer compositor de classe média que faça música, por mais talento que tenha, é logo acusado de deturpador [...] Noutro dia, ele chamou Caetano Veloso de mau caráter simplesmente porque Caetano dedicou um dos seus discos a Clementina de Jesus."

No texto, Cabral listava os artistas "esculhambados" por Tinhorão --"os pilares de nossa música popular", definia, "atrapalham a penetração da música norte-americana no Brasil. Portanto, o negócio é destruí-los".

Passados 38 anos, Cabral --que trabalhou com Tinhorão no "JB"--se diz arrependido. "Era só provocação. Tinha lógica, mas era um absurdo. Fui grosseiro e me arrependo. Tinhorão não merecia: é um pesquisador sério. Sou fã dele."

Poucos se dispõem hoje a ressuscitar suas controvérsias com o crítico. Procurado, Caetano alegou, por meio de sua assessoria, falta de tempo para dar entrevista, mesma justificativa dada por Chico. Paulinho da Viola mandou dizer, pela sua mulher, "que não tem nada a falar sobre esse assunto".

O SOGRO O ataque no "Pasquim" apenas tangencia uma passagem pouco conhecida da vida de Tinhorão. Ao afirmar no artigo que o crítico era à época "muito bem protegido", Cabral possivelmente se referia ao então sogro do colega, Antonio Ferreira Marques.

Veterano da FEB na Segunda Guerra, o general Marques foi chefe do Estado-Maior do 2º Exército (em São Paulo) durante um dos períodos mais duros da repressão (ocupava o cargo quando Vladimir Herzog foi assassinado pelos militares, em 1975) e chegou a chefe do Estado-Maior do Exército brasileiro no governo Figueiredo (1979-85).

Cabral diz que sabia que Tinhorão tinha um sogro do Exército, mas jura que desconhecia quem era o militar e quanto poder ele detinha --a informação tampouco aparece na biografia de Tinhorão, e mesmo amigos mais próximos afirmam ignorar esse capítulo.

Tinhorão foi casado com Noely Marques de 1964 a 1980. Era um tempo em que frequentava colunas sociais, como a de Tavares de Miranda, na Folha. O casal teve três filhos. O pesquisador conta que há muito tempo não fala com eles. "Se você tem uma sociedade e um dia a empresa se desfaz, o que é que você tem que ver mais com seus ex-sócios?", questiona.

Ele emposta a voz e ironiza: "Aí você vai me perguntar: mas e as relações afetivas?". E responde: "Meu casamento era burguês, para a família que eu tinha o importante era ter sucesso material. Como eu rompi com esses valores, me afastei automaticamente dos personagens que os resumiam". Segundo Tinhorão, por um tempo, os filhos telefonavam em seu aniversário, mas nem isso fazem mais --"o que é um conforto para mim", diz.

Indagado sobre se suas posições de esquerda interferiram na sua relação familiar, afirmou: "Perto de mim, ele [o sogro] não falava de determinados assuntos. Era uma coisa tácita. Ele sabia que eu não ia aprovar e eu mais ou menos sabia o que poderia sair daquela cabeça. Então pra que é que eu ia mexer?".

LIBERTO O novelão estaria circunscrito à vida pessoal do crítico, não fosse a separação ter marcado uma guinada na sua carreira.

Vivendo desde 1968 em São Paulo, para onde se mudara ao aceitar convite da revista "Veja", ele separou-se em 1980 e, ao passo que diminuía sua colaboração com a imprensa, se aprimorava como historiador da cultura.

"Você não se separa, vira homem liberto: casamento é escravidão. Ele te dá obrigações morais, éticas e sentimentais e te amarra economicamente. A vida individual acaba, você passa a ser um homem de família, o que é incompatível com a atividade de pesquisador."

Tinhorão deixou "uma casa burguesa" na Vila Nova Conceição, bairro nobre na zona sul paulistana e mudou-se para uma quitinete de 31 m² na rua Maria Antonia, que já usava como escritório e arquivo.

A partir dos anos 90, rato de sebos e bibliotecas, passou a ser referido como aquele grande pesquisador que vivia entre livros num apartamentinho no centro de São Paulo. Estimulava a lenda, dizendo que, sem espaço para cama, pernoitava num saco de dormir e que coleções de jornais e revistas lotavam o minúsculo banheiro.

Janio de Freitas acredita que a opção de Tinhorão pela pesquisa foi motivada pela reação que o trabalho do crítico provocava. "A contestação sobre ele ver influência americana em tudo criou muita polêmica, e a polêmica o levou a deixar o jornalismo. Ele é muito polêmico, é do temperamento dele, mas não é mal-humorado, é engraçado, e pagou por isso."

Junto com o acervo, multiplicavam-se os livros de Tinhorão. Àquela altura, sua principal obra era a reunião de artigos "Música Popular: Um Tema em Debate", seu segundo trabalho publicado, de 1966, e até hoje o seu livro mais conhecido. (O primeiro, do mesmo ano, foi "A Província e o Naturalismo", ensaio sobre como essa escola floresceu no Ceará.)

Fez obras de referência, como "Pequena História da Música Popular" (1974, na 7ª edição) e "A Música Popular no Romance Brasileiro", trabalho em três volumes (1992, 2000 e 2002) que esmiúça como os ficcionistas do país trataram do tema. Investigou a gênese de manifestações pouco conhecidas ("O Rasga: Uma Dança Negro-Portuguesa", de 2007), apresentou pioneiros ("Domingos Caldas Barbosa: O Poeta da Viola, da Modinha e do Lundu", 2004, sobre o primeiro compositor popular do país).

O VELHO DE BARBA No entender do professor de história da USP José Geraldo Vinci, coorganizador, com Elias Thomé Saliba, de "História e Música no Brasil" (Alameda), Tinhorão aprofunda e ordena o trabalho iniciado por pioneiros da historiografia musical brasileira, como Almirante, Vagalume, Orestes Barbosa e Lúcio Rangel.

"Ele coloca a carga dessa primeira geração a serviço de um discurso historiográfico muito articulado e documentado, que cria uma narrativa, uma interpretação, que pode até ser pessoal ou calcada em teorias discutíveis, mas que representa um grande avanço."

Segundo Vinci, dos desbravadores, Tinhorão guarda a concepção de música popular "naturalizada", a ideia de que "só a música do povo é pura e bonita", mas acrescenta aos antigos a documentação obsessiva e a visão marxista.

Tinhorão explica que uma particularidade (o excesso) se compensa com a outra (o marxismo). "É como uma pessoa que come demais e não consegue digerir. Para evitar que isso acontecesse comigo, precisava de um método. O meu é o materialismo histórico: a realidade observada numa sociedade de classes e a cultura numa cultura de classes. Vamos ver os fenômenos culturais conforme a área de quem produz e consome."

Ele não vê incoerência em --sendo ele mesmo de classe média e tendo se dedicado sempre à cultura popular-- apontar a "apropriação" por sua classe social, da música das camadas mais baixas.

"Assumi uma posição fora da minha classe. É preciso coragem para isso. Não digo que só a produção popular é que é válida. O que digo é que a classe média é que crie a produção dela. Quando tenta imitar, vira caricatura. Aí entra o velho de barba [Marx]: a classe média não é uma classe para si."

Tinhorão diz que "sofre" ao subverter sua classe. "Veja o drama: os que poderiam concordar com minha análise não podem me ler. E os que entendem detestam."

Na transição de crítico a historiador, não abriu mão de buscar novos alvos. Talvez o preferido seja a universidade, que ele associa a "acomodação", em oposição à curiosidade intelectual que diz ser a mola do seu trabalho. "A especialização é burra. Quem está na academia é o competente burro, sabe tudo de sua área e não enxerga mais nada lateralmente. Minha forma de conhecer as coisas não tem bitola. Eu brinco nas 11."

O ressentimento com a academia é um dos aspectos mais intrigantes de sua trajetória. Faz anos que ele reclama do suposto desprezo que acadêmicos nutrem por sua obra, com quase-bordões como "eles comem Tinhorão e arrotam Mário de Andrade" ou "só sou citado como apud' [indiretamente, como o autor que teve acesso à fonte original]". Como recorda José Geraldo Vinci, isso pode ter sido verdade; hoje não mais.

"A academia não dava mesmo muita importância, não a ele, mas ao que ele estudava, a canção popular urbana. As ciências sociais e a história foram muito refratárias ao tema até o início dos anos 90. Hoje ele é respeitadíssimo. Mas acho que não recebe o debate com abertura de espírito", comenta.

O também historiador da USP Marcos Napolitano, autor de "História & Música" e "A Síncope das Ideias", endossa a visão do colega.

"Tinhorão é referência para muitos, embora a historiografia da música popular tenha avançado para outras perspectivas nos últimos anos. Seus livros mais historiográficos são leituras correntes nas pesquisas acadêmicas."

Só uma vez Tinhorão dominou o asco que diz nutrir pela academia, quando, no final dos anos 1990, já septuagenário, fez um mestrado em história na USP, que resultou no livro "A Imprensa Carnavalesca no Brasil - Um Panorama da Linguagem Cômica" (Hedra, 2000).

Ele gosta de frisar que só topou a experiência do mestrado porque precisava do dinheiro da bolsa para viajar ao Recife, base, junto com o Rio, da maioria das publicações carnavalescas pesquisadas.

O percurso acadêmico foi "sui generis". Tinhorão escolheu um orientador que nada sabia sobre o tema pesquisado, o especialista em Idade Média Jônatas Batista Neto, somente porque o conhecia das rodas de uma livraria do centro de São Paulo. "Não o orientei. Só lhe garanti a possibilidade de fazer o trabalho", afirma Batista Neto.

Tinhorão foi aprovado com louvor. Um dos integrantes da banca que avaliou sua dissertação foi o historiador Nicolau Sevcenko, professor da USP e de Harvard (EUA) morto no mês passado.

"O que chama mais a atenção no trabalho do Tinhorão é a vasta erudição dele, o conhecimento quase enciclopédico de uma variedade de fontes empíricas de pesquisa, de coleções de documentos, de arquivos e bibliotecas, de testemunhas, depoimentos", comentou Sevcenko, antes de listar muitas outras fontes de pesquisa do colega --46 outras, precisamente. "Nesse sentido" acrescentou, "é uma referência imprescindível para qualquer pesquisador interessado em temas de cultura popular".

ALÉM-MAR Com "Os Negros em Portugal - Uma Presença Silenciosa" (Caminho, 1988), Tinhorão passou a publicar os resultados de sua crescente pesquisa naquele país, que visita ao menos um vez por ano, desde o começo dos anos 1980, para garimpar sebos e arquivos públicos. "O português faz silêncio sobre isso [a história da contribuição negra à cultura do país] e, como a bibliografia brasileira não falava nada, senti necessidade de ir lá", conta o autor.

Ele chamaria a atenção além-mar especialmente por esta obra e por "Fado - Dança do Brasil, Cantar de Lisboa" (Caminho, 1994), na qual desenvolve a tese --antes já levantada por nomes como Câmara Cascudo e Mário de Andrade-- de que o gênero português teve origem no Brasil, a partir do lundu.

Com seis livros editados em Portugal tornou-se referência entre acadêmicos do país. "Pelo seu fascinante contributo para a redescoberta ou iluminação do passado e pela sua oposição a mitologias várias que ainda perduram na imaginação da identidade nacional, a obra do Tinhorão, sobretudo o excelente Os Negros em Portugal', tem inegável valor", diz o sociólogo Miguel Bandeira Jerónimo, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

O musicólogo e professor da Universidade Nova de Lisboa Rui Vieira Nery agrega: "É um pioneiro da abordagem pós-colonial, sobretudo ao chamar atenção para a influência mútua e para a circulação de modelos culturais entre o Brasil colonial e a metrópole portuguesa mas também para a importância do contributo africano para o tecido cultural luso-brasileiro".

Apesar das loas, Tinhorão não está imune a críticas de acadêmicos, ainda que em geral elas surjam de quem o admira ou respeita.

É o caso de José Miguel Wisnik, professor de literatura na USP. Autodefinido "o maior conhecedor de José Ramos Tinhorão que eventualmente exista", já passou alguns pitos públicos no historiador.

No ensaio "Global e Mundial", publicado em 2004 em "Sem Receita" (Publifolha), Wisnik rejeita o "fundamentalismo sociocultural" em defesa das classes populares encampado por Tinhorão. Num adendo publicado no mesmo livro, acusa Tinhorão de ter usurpado uma ideia sua sobre a originalidade do rap brasileiro como bom exemplo de "mundialização" que ele contrapunha à globalização.

Wisnik narra que, num debate com Tinhorão, este desdenhou do rap ("pois já tínhamos o cordel, o repente e a embolada", teria dito), mas que, três anos depois, em entrevista à Folha, apresentou o gênero como "a grande novidade" da música popular do país --declaração que repercutiria muito à época e que seria ecoada meses adiante por Chico Buarque, como sintoma do esgotamento da canção.

"O mais extraordinário é a composição da frase: Costumo dizer que o rap é a grande novidade, porque restaura a música da palavra'. Como assim, costuma dizer? Em primeiro lugar, costuma coisa nenhuma; em segundo, quem disse isso a ele fui eu", escreveu Wisnik.

Tinhorão trata a acusação como "bobagem". "Se ele falou isso na palestra, eu não lembro. O que eu disse é que o rap é uma forma de embolada, e isso ele não falou", afirma, antes de repetir uma "boutade" sobre o assunto: "Quem primeiro fez rap foram os padres, que leram o texto evangélico em forma rítmica, os cantochões. Isso ele [Wisnik] nem sonhou em saber".

O que Tinhorão não tem como negar --embora também o faça-- é o fato de, em meio à sua vasta produção, às vezes copiar a si próprio.

A reportagem identificou duas passagens de um livro dele repetidas em outro, sem a devida citação (em um dos casos, apenas poucas palavras foram substituídas).

Um trecho de três páginas sobre o tropicalismo de "Pequena História da Música Popular Segundo seus Gêneros" (págs. 283 a 286) ressurge idêntico em "História Social da Música Popular Brasileira" (págs. 339 a 342). Já uma passagem sobre o frevo editada nas páginas 161 e 162 de "Pequena História..." reaparece igual, com o acréscimo de uns poucos termos, na página 192 de "História Social...".

Indagado sobre se aproveitara partes de um livro no outro, afirmou: "Você diz transcrever? Não. Não me lembro. Na minha cabeça não cabe eu me transcrever --me citar sim, mas entre aspas".

O reconhecimento, no Brasil, ao trabalho de Tinhorão teve impulso significativo no início dos anos 2000, quando o Instituto Moreira Salles adquiriu seu acervo. Na sede carioca do IMS, na Gávea, a coleção que foi do historiador é a maior em volume entre as de música.

Reúne partituras, discos, rolos de pianola, folhetos, fotos etc. Entre as raridades estão disquinhos tipo "berliner", do início do século 20 (compactos de 70/72 rpm com músicas só de um lado) --um deles, gravado em Londres em 1901, traz o Hino Nacional Brasileiro executado por uma banda militar londrina--, a primeira edição do livro "Na Roda do Samba" (1933), de Vagalume, e coleções das revistas "O Malho" (1902-52), "Careta" (1908-52) e "Fon-Fon" (1902-52).

"Não dá para dizer que é nosso acervo mais importante, porque temos os de Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga. Mas é sem sombra de dúvida a mais ampla e peculiar do IMS", comenta o pesquisador Euler Gouvêa, um dos responsáveis pelos acervos musicais do instituto.

PARRUDO Tinhorão é baixo, parrudo e ereto. Anda sempre vestido de maneira formal. Afirma não ter dom para ensinar ("sou melhor escrevendo que falando"), mas pontua as conversas com leituras de longos trechos de seus livros, enfatizando as palavras finais e balançando o dedo em riste, como a frisar a validade do que diz.

Não conhece a modéstia. Seja nas apresentações de seus livros, em bate-papos ou entrevistas, está sempre a ressaltar os seus feitos. Diz que, para o novo livro sobre a congada, vai desmascarar "a mentira dos reis do Congo", revelando que naquele país jamais houve monarquia e que os títulos de rei foram dados pelos portugueses para afagar os colonizados. "Eram reis de mentirinha, ninguém no Brasil ou Portugal escreveu isso."

Comenta que, em "De Índios, Negros e Mestiços" (1972, esgotado), foi o primeiro a desvendar as razões da integração dos negros africanos de Portugal ao catolicismo, por meio da devoção à Nossa Senhora do Rosário. "Quem levantou as hipóteses foi o menino aqui."

Tinhorão mantém a mesa impecável, e o fichário com a bibliografia dos temas que pesquisa, sempre atualizado. Escreve a lápis, depois passa a máquina de escrever e só então pede ajuda para digitarem no computador, tarefa em geral feita pela sua segunda mulher, a professora aposentada Maria Rosa Vieira, 21 anos mais nova e com quem vive desde 1980.

Ela o trata por "Zezinho". Dividem, com cinco gatos, um apartamento de 93 m² na alameda Barão de Limeira, em Campos Elíseos, na região central de São Paulo.

A biblioteca é enxuta, formada por livros que está consultando e obras de referência.

Com a ajuda da mulher, pesquisa no Google e na Wikipedia. A vídeos no Youtube, diz que só assiste "para sacanear plágio dos outros" --são notórias suas acusações de que clássicos da MPB, como "Águas de Março", "Desafinado" e "As Rosas Não Falam", são derivados de outras canções.

Lúcido e vivaz, tem porém lapsos frequentes de memória, quando recorre à mulher (falava "naquela americana metida a brasileira" quando lhe faltou o nome de Rita Lee; Maria Rosa o acudiu).

Admite ser pão-duro ("tenho mentalidade de proleta, sou meio mão de vaca"). Não almoça. Acorda tarde ("a manhã é feita para despertar"), toma um café reforçado e volta a comer no início da noite.

Seu melhor amigo hoje é o ótico e bibliófilo Israel Souza Lima, 89, com quem sai às quartas e sextas para conversar, ler e frequentar sebos no centro de São Paulo --o outro era o pesquisador musical Humberto Franceschi, morto em junho último, aos 86.

Tinhorão não toma cerveja ("embucha muito"), mas bebe vinho e cachaça, esta em geral aos sábados à tarde, quando vai religiosamente ao Amélia, o boteco onde ocorreu a roda de samba dos seus 86 anos.

Tudo começou por causa de um sebo que existia em frente ao bar. Desde 2010, o bloco da turma do Amélia, o Esquina da Vila Buarque, o homenageia no Carnaval.

Naquele sábado da festa, o samba esquentou, choveu por alguns minutos (depois de semanas em que a seca já então se instalara em São Paulo), a chuva foi-se com a rapidez que chegou. O velho pesquisador não se deixou afetar por tanto carinho. "Sou cínico. Acho gentil da parte das pessoas, mas a mim não causa emoção. Faz parte."

José Ramos Tinhorão diz não ter arrependimento ou remorso de querelas do passado, mas faz uma sutil admissão: "Eu poderia ter sido mais maneiroso. Teria sido mais cômodo, eu me tornaria mais conhecido. Mas é o meu jeito".

O que Tinhorão não tem como negar é o fato de, em meio à sua vasta produção, às vezes copiar a si próprio. Passagens de um livro dele são repetidas em outro

"Meu casamento era burguês, para a família que eu tinha importante era o sucesso material. Como rompi com esses valores, me afastei dos personagens que os resumiam", diz ele

O crítico começou a apontar a "impureza" da bossa nova quando o movimento estourou, em 1962. Dessa rusga viria boa parte de sua fama e um grande número de desafetos


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