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Um pedaço bruto de vida

A narrativa de Dalton Trevisan

BERTA WALDMAN

RESUMO Professora analisa aspectos como a repetição e o uso dos clichês na obra do curitibano até os anos 2000. Esta é uma versão abreviada de um dos 17 textos inéditos que estarão em "Do Vampiro ao Cafajeste e Outros Ensaios sobre a Obra de Dalton Trevisan" (org. Hélio Guimarães), a sair pela Editora da Unicamp neste semestre.

Arredio a todo contato direto com o público, recusando-se a participar de eventos, a dar entrevistas, a expor-se heroicamente como uma personalidade singular, o curitibano Dalton Trevisan forja insistentemente os limites que separam sua vida de sua obra.

Esse isolamento deliberado do escritor, entretanto, funciona como um bumerangue. Se, por um lado, seu desejo expresso é o de ser deixado à margem, como que anunciando que o que de fato importa são seus livros, por outro, os leitores não suportam o vazio da imagem pública do autor e acabam por preenchê-lo com uma representação que eles forjam.

Desde que começou a escrever, nas décadas de 1940-1950, Trevisan demonstrou possuir os atributos que fazem um grande escritor: originalidade, capacidade de resumir sua época, de opor-se a ela.

Apesar de alguns escritores paranaenses participarem do séquito modernista na década de 1920, é só a partir dos anos 1940 que surge um movimento propriamente de renovação das artes no Paraná. Nem poderia ter sido diferente. Curitiba, nos anos 1920, era uma pacata capital de província, demasiado tranquila. Como refletir os dramas e neuroses de uma civilização tecnológica em meio a tanta paz? De onde extrair o tipo de inquietação que iria mover, por exemplo, os futuristas de Milão ou o Armory Show de Nova York?

Só duas décadas mais tarde é que as cidades paranaenses entraram num esquema de vida mais agressivo, o que talvez tenha viabilizado o surgimento de alguns artistas da nova geração de 40 (à qual pertence Dalton Trevisan) com novas propostas estéticas.

Se certa contextualização ou o estabelecimento de algumas relações extratexto são necessários para saber de que modo um escritor fala com sua época, eles não são, contudo, suficientes para determinar o modo particular de sua fala. Essa especificidade só pode ser alcançada pela análise dos textos.

Trevisan é um contista que reúne, hoje, vasta obra. Acompanhando sua produção literária e observando-a em seu conjunto, percebe-se nela o itinerário de uma busca obsessiva e incessante que se manifesta na repetição de situações, de personagens, de um mesmo mote que se contorce em voltas infindáveis. Como uma história se repete na outra, forja-se um discurso reiterado que esconde, contudo, uma operação dupla: progressivo-regressiva, regressivo-progressiva, movimento estático, já que reiterar, recorrer, retomar, supõem que se está a caminho e que se insiste em seguir. Mas caminho que aponta para o retorno.

Essas repetições compõem um estranho ritual que não encontra correspondência em nenhum movimento cíclico, já que ciclo supõe mudança, deslocamento e retorno.

O que perfaz sua narrativa é justamente a ausência de mudanças, e o movimento que ela traça é o da repetição do sempre igual. Nesse sentido pode-se dizer que as personagens e sua história não encontram correspondência nos ciclos da natureza, apontando seu homólogo no contexto social. De uma neutralidade semelhante à da época em que se inserem e que as cria, elas e suas histórias repetidas nos explicam e comunicam o cotidiano que é delas e que é nosso.

VAMPIRO A metáfora que traduz esse universo seriado e repetido vem de um núcleo arquetípico, em que imperam imagens demoníacas. Entre os demônios, o autor privilegia o vampiro como figura capaz de significar a realidade que deseja traçar. Por que o vampiro?

Na sua prática, o vampiro situa-se no rol das criaturas cuja ação o nosso desejo rejeita. Se, de nosso ponto de vista, ele caminha em pleno domínio do negativo, na atuação vampiresca essa negatividade se revela como prazer.

Em Freud, Eros e Tânatos são categorias divergentes porque Tânatos revela o sentido de Eros como aquilo que resiste à morte, situando, portanto, as pulsões sexuais como pulsões de vida, atuantes contra o desígnio das pulsões que conduzem à morte. Essas duas pulsões são configuradas como convergentes na prática vampiresca, já que no ato da conjugação sexual se instila a morte.

Não são necessários dois vampiros para que surja um terceiro. A vítima do vampiro torna-se vampiro. A multiplicação, portanto, dá origem a um outro que, paradoxalmente, é o mesmo. Destituído das funções vitais, pode-se dizer que o vampiro é um ser morto. Mas, como se multiplica, liga-se à vida e ergue-se no universo lendário em que existe como figura erótica.

O vampiro porta, também, uma face trágica. Sem repouso nem satisfação, é impulsionado a prosseguir perpetuamente por um caminho que não escolheu. Nem verdadeiramente morto nem vivo, dirige seu desejo a objeto igualmente ambíguo: querer viver, querer morrer. Para sobreviver, tem de beber o sangue dos vivos, mas não cabe a ele a opção de não sobreviver.

Situado no limiar, e com acesso aos dois mundos, projeta-se como figura terrível mas fascinante. Terrível, pelo pavor de que uma vida corpórea depois da morte signifique danação. Fascinante, porque a ideia de aniquilação total é pavorosa para o homem. A angústia de morrer e o fascínio da morte, a esperança de sobreviver e o medo da sobrevivência diabólica, essa dupla tendência parece ser a chave do fenômeno vampírico. Como se vê, o vampiro comporta o movimento e a fixidez. É por isso que, enquanto metáfora, tem a força de traduzir a obra de Trevisan.

Nela, o vampiro despe sua longa capa negra, abre mão de seus modos sofisticados e dos refinamentos da grande crueldade, pendura as asas e, vestindo roupa comum, anda de ônibus pelas ruas de Curitiba. O aristocrata torna-se, num passe de rebaixamento, todos nós.

FAMÍLIA A família é o lugar privilegiado pelo escritor para enfocar a vida como vampirização. É em seu âmbito que se explicita a impossibilidade de convívio com a diferença, na prática da guerra conjugal, em que a existência se confina a um cerco do qual o outro é expulso e onde só cabe o eu.

No limiar da angústia, da crueldade, da agressividade, da lubricidade, as personagens reduzem-se a peças silenciosas de um espetáculo sempre igual, indiferenciado e terrível: o do cotidiano. Visto como o domínio da tautologia, da repetição, universo plano gerador de formas embalsamadas, de um modelo que se produz perpetuamente, o domínio do cotidiano se identifica com o do vampiro.

A linguagem que conta esse universo achatado pela multiplicação do mesmo é feita de grandes elipses, de pausas, de cortes abruptos, frases reduzidas. Pode-se observar nessas marcas um caminho que aponta para a redução da linguagem, que passa a incorporar o não dito, o implícito, uma área de silêncio emperrando o curso da linguagem. Das entranhas do discurso, surge o silêncio como um outro rumo ao qual o primeiro caminha, e é a essa forma peculiar de trabalho da linguagem que chamo de discurso-vampiro, expressão sem dúvida paradoxal, na medida em que o conto, enquanto linguagem articulada, nunca silencia.

Um dos principais responsáveis pelo entranhamento do vazio na narrativa de Trevisan é o clichê, entendido como a fala citada, o molde, que não remete a um ato individual de percepção diante de um elemento único da experiência. O clichê promove a diluição desses caracteres irredutíveis, anulando a observação original de um objeto específico, reorganizando-o sob a forma de estereótipo.

Em outras palavras, o clichê fixa a linguagem e se institui, por força da cristalização, como uma espécie de antilinguagem que não comporta as possibilidades de atribuição de sentido à experiência particular. Nesse sentido, o uso do clichê predica a ausência de sujeito e resulta, nos contos do escritor, na construção de um tom ambíguo quanto ao emissor das narrativas, tornando difícil ao leitor distinguir quem fala, já que a fala tanto pode ser atribuída ao narrador como a uma personagem ou outra.

"READY-MADE" Entre as linguagens prontas, a predileção de Trevisan recai sobre a fotonovela, para expressar o universo feminino, e sobre a imprensa marrom, o relatório policial, para expressar a violência. Algo como um "ready-made", esses textos são sempre caracterizados por uma estrutura monolítica, construídos a partir de operações prefixadas, em que a voz do narrador não identifica um sujeito, mas sua abstração.

No caso da imprensa marrom, a voz do narrador é representada como a salvaguarda do equilíbrio social. Por isso, estão sempre à cata de culpados, de "monstros", estupradores, homicidas etc. A procura do culpado e seu banimento do espaço da "normalidade" perfazem o ritual que visa à catarse coletiva. Quem compra os jornais sabe que existem "monstros" soltos, já que padecem no cotidiano a violência disseminada e indiscriminada. Com o simples gesto de comprar o jornal, refaz o leitor cotidianamente seu próprio equilíbrio e reconstrói sua redenção diária.

Ao deslocar esse tipo de linguagem para a literatura,o autor não só subtrai a carga de "verdade" que ela apresenta como desmorona a hipérbole sobre a qual se constrói a monstruosidade, apontando, ao lado da violência, para os gestos cotidianos das personagens (preocupam-se com os filhos, fumam, cospem no chão etc.).

Com isso, ele cotidianiza o terrível, diluindo, no leitor, a imagem e a certeza de que os "monstros" são os outros, ao mesmo tempo em que chama a atenção para a monstruosidade da vida cotidiana. Sirva como exemplo desse tipo de linguagem o conto "Debaixo da Ponte Preta" (em "O Vampiro de Curitiba", 1978), do qual segue uma pequena mostra:

"Noite de vinte e três de junho, Ritinha da Luz, dezesseis anos, solteira, prenda doméstica, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã Julieta, atrás da Ponte Preta. Na linha do trem foi atacada por quatro ou cinco indivíduos, aos quais se reuniram mais dois. Então violada por um de cada vez e abandonada entre as moitas. Seu choro atraiu um guarda-civil, que a conduziu até a delegacia."

COR-DE-ROSA No que se refere ao uso da fotonovela, a escolha recai sobre esse reduto que embalsama a situação idílica do romance cor-de-rosa porque é aí que o autor localiza uma das matrizes que ditam o comportamento da mulher. A imagem da mulher inerente à fotonovela cinde-se em casta e vampe, pura e carnal, procurando sempre velar a degradação do corpo, também ele reduzido hoje a um objeto de consumo como os demais produzidos pela indústria.

Desse modo, a heroína, às voltas com o mundo degradado, sai ilesa de qualquer contaminação, façanha conseguida graças ao abismo intransponível existente entre ela e o mundo que não chega a tocá-la.

Ora, ao incluir essa linguagem em sua narrativa, Dalton Trevisan faz contracenar o amor romântico com o dinheiro, trazendo para a literatura um mecanismo social: a "comédia ideológica" (a expressão é de Roberto Schwarz, em "Ao Vencedor as Batatas") forjada pelo desconcerto de uma sociedade que tem suas bases no dinheiro, mas alimenta sua imaginação no rádio, foto e telenovela, que normalmente o repudiam, forçando na contramão a imagem ilusória do puro amor e da felicidade idílica.

Contracenando com esse registro que vem direto do manual de cartas de amor vendido em bancas de jornal, outro registro feito de arroubos de "subjetividade", indicativos de um desejo claro de que o casamento ou a união matrimonial solucionem o problema de sobrevivência econômica da mulher. Ambos, postos lado a lado, alcançam um efeito de fino humor.

Sem dúvida, o uso do clichê provoca uma boa dose de abstração e desindividualização da matéria narrada. Na boca da personagem, tem o poder imediato de transformá-la em réplica, em portador abstrato. Não é mais o eu que se conta ou conta o mundo pela linguagem. É ela que toma rumo próprio, alheio às intenções da subjetividade. A realidade está presa a uma forma prefixada, como um inseto numa teia de aranha.

Espécie de olho da câmera, essa linguagem cristalizada alcança descrever o desumano de modo desumano. Põem-se de lado os filtros sentimentais, qualquer intuito de humanização, e o resultado é o efeito grotesco adicionado de humor entre satírico e negro.

O realismo de Dalton Trevisan insere-se, historicamente, na linhagem desconfiada do realismo de um Flaubert ou de um Machado de Assis. Entretanto, tachá-lo de realista pura e simplesmente é incorrer num equívoco semelhante ao que considerava o hiper-realismo como um retorno à representação depois das abstrações antifigurativas do expressionismo abstrato. As pinturas hiper-realistas não eram exatamente realistas porque representavam não o mundo exterior, mas uma fotografia dele. Numa atitude de quebra do ilusionismo da representação, Trevisan traz para a literatura linguagens já prontas que dão a seu estilo e à narrativa tom realista. Mas trata-se de uma representação da representação. Imagem da imagem.

A confusão entre a linguagem dos meios de comunicação e a de Trevisan é possível porque, num certo ponto da trajetória, houve um roubo, a apropriação de uma forma esvaziada por força de repetida, que vai ganhando em sua obra novos planos de significação.

Reciclada, parte de outro tecido verbal, a linguagem pronta, o clichê, vai precipitando a criação de um espaço oco no interior da linguagem. É esse vazio um dos fortes responsáveis pela fragmentação do conto de Dalton Trevisan. A outra parte da responsabilidade recai sobre a suspensão de regras tácitas da convenção literária que o autor vai imprimindo às suas narrativas.

Um exemplo de suspensão pode ser visto na permutabilidade de falas e vozes que tanto podem manar de uma boca como de outra, o que recoloca sempre a questão: quem é o sujeito da enunciação?

O tema da diluição da diferença certamente é a chave que explica a necessidade de tornar pouco nítido o ponto de enunciação e também --esse é outro lado do mesmo exemplo-- a necessidade de suprimir mediações na construção da narrativa de modo a se chegar ao plano único de bidimensionalidade que expõe o objeto ao mesmo tempo que se expõe como seu suporte. Se a perspectiva é a expressão de uma relação entre dois polos, sendo um o narrador, e o outro, o mundo narrado, a ruptura se dá quando um dos polos é eliminado e com isso se diluem os planos. O residual são os contos aforismos, como este, de "Abismo de Rosas" (1976):

"-- Está quentinho o café?

Entende que ela chama o outro de benzinho."

Será necessário dissimular o diálogo, quando ele insiste em se mostrar monólogo? Quando a fala do outro se constrói --caso da micronarrativa acima-- como projeção dos fantasmas de um interlocutor dotado de ouvidos moucos?

A significação da pergunta desse interlocutor anônimo reside menos no que ele diz do que no beco sem saída em que desemboca. A pergunta --que pode ser vista como portadora de uma função fática, proferida provavelmente em situação coloquial-- não tem a força, o impulso capaz de construir um curso, porque falha como liame, ponte que carece de suporte. Daí a interferência do relato indireto que, ao comunicar o mal-entendido, comunica também o final de um jogo: a representação acabou.

Como ficou dito em outra parte, a ruptura, o estilhaçamento é o traço distintivo da arte minimalista de Dalton Trevisan. Ela ocorre nas narrativas, nas micronarrativas e também no romance --na verdade um conto espichado, "A Polaquinha" (1985), publicado contra todas as expectativas. É a ruptura que o autor constata, enfatiza, retoma com frieza e certa dose de humor. Nenhum eco metafísico, nenhuma ressonância psicológica, só mesmo a superfície dilacerada. Um pedaço bruto de vida.

Nota: Leia mais sobre Dalton Trevisan nas págs. 4 e 5 desta edição, que traz ainda contos inéditos do autor, na pág. 8.


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