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Crítica

O livro-túmulo

O eterno retorno de Juan Luis Martínez

LUIS PÉREZ-ORAMAS

RESUMO

O curador da 30ª Bienal de Arte de São Paulo escreve sobre uma de suas apostas da mostra encerrada em 7/12: o chileno Juan Luis Martínez (1942-93). Autor de livro hermético, publicado sem dados biográficos nem textos críticos, Martínez tem sua obra comentada, em especial as conexões com Mallarmé e Baudelaire.

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Nas estantes de uma das mais belas livrarias de São Paulo, vejo a caixa cinza ou negra do livro negro ou cinza de Juan Luis Martínez. "El Poeta Anónimo" [Cosac Naify, 344 págs., R$ 99] está ali, silencioso como um túmulo, sem que muitos saibam do que trata, qual é o rumor de seu silêncio, ou o que significa sua anonímia. O editor Charles Cosac, que assumiu com valentia poética a improvável publicação dessa obra, decidiu também, acertadamente, que o livro não traria nenhum tipo de marca, apresentação, nenhuma informação sobre seu objeto ou seu autor.

É um livro hermético, um poema cifrado, uma cabala.

Assim, Cosac completou um legado e uma obra imensa, trazendo à luz um "manuscrito" inédito, encontrado entre as coisas deixadas por Martínez ao morrer e destinado, segundo nos conta Elianita, viúva do artista, também à morte: isto é, a ser consumido numa fogueira que Martínez, no dia em que morreu, teria encomendado a ela, a fim de enviar sua poesia ao universo sob forma de fumaça.

Cada vez, então, que segurarmos um exemplar de "El Poeta Anónimo", devemos saber que sobre nossas mãos pesa a gravidade de uma poesia milagrosa, que se salvou do desaparecimento pelas mãos amorosas de Elianita, dando-nos assim a possibilidade de sentir o peso de uma morte que não se incendeia nunca e que é como este livro, ao mesmo tempo o eterno presente e eterno retorno de Juan Luis Martínez.

Explico. Mas antes cometerei a ousadia de lançar uma afirmação categórica: Martínez, poeta chileno nascido em 1942 e morto em 1993, é a figura literária que encerra, na América hispânica, a grande tradição poética moderna iniciada pelo "lance de dados" de Stéphane Mallarmé, que fora implantada e transformada, precisamente no Chile, por Vicente Huidobro (1893-1948), no início do século 20.

Mallarmé, Huidobro e Martínez constituem uma genealogia fundamental na história da poesia moderna na América, uma poesia que desfaz seu canto na mudez do espaço, ou que se desfaz de versos para se fazer arquitetura de palavras encontradas no firmamento branco e escuro da página, na matéria densa e leve da linguagem.

ESPELHOS

São, de fato, espelhos paralelos: Martínez nasceu em 1942; Mallarmé, cem anos antes, em 1842; em 1898, morre Mallarmé; Martínez, em 1993 e, por cinco anos, o espaço de sua vida não foi idêntico, sobre nosso século, ao da sombra iluminada de Mallarmé sobre o seu.

Mais ainda: no delírio da morte, Mallarmé mandou que se queimasse sua obra, da mesma forma como faria Martínez. Em ambos os casos, esse espelho último da dissipação se quebrou. Porque obras são ainda mais poderosas do que vidas -ou que sua última sombra, a morte.

"El Poeta Anónimo" é um livro que se vê, mais do que se lê; ou que se vê como se se lesse; ou que se lê como se se visse. Poesia encontrada -"ready-made" poético-, nele não há uma só frase escrita por Martínez, e sim muitas, todas, encontradas por ele no babélico labirinto das línguas: castelhano, inglês, francês, alemão, italiano.

Seus materiais -não sua matéria- provêm de numerosíssimas fontes: quadrinhos, obituários, imprensa sensacionalista, ensaio antropológico, teoria literária, história da pintura antiga, orações, miscelâneas, caricaturas, notícias, propaganda: "felicidade da nostalgia e nostalgia da felicidade" -como se lê em um título de jornal estrategicamente transformado em verso em "El Poeta Anónimo".

Acontece, com esse livro, que a poesia -ou, melhor dizendo, o discurso- foi estirada a um ponto de tensão máxima, transformando-se em uma corda sonora: o fio de outras vozes, fragmentadas, que não se dão à inteligibilidade, mas dela se escondem, se velam, diferem; a única forma de ler suas páginas é vê-las, e vice-versa: a única maneira de vê-las é lê-las, desde que o façamos como se não estivéssemos destinados a entendê-las.

A chave para "El Poeta Anónimo" reside, então, na afirmação escrita por Gershom Scholem a seu amigo Walter Benjamin: não ler tanto a escuridão transparente das letras quanto a transparência escura, hermética, sem som, muda do branco que as separa; ler como se não entendêssemos o que lemos, para colocar em suspensão a certeza preconcebida que nos leva, sempre mais ou menos banalmente, a nos aproximarmos de um texto como se ele nos fosse dirigido, nos fosse oferecido, exposto.

"El Poeta Anónimo" exige outro tipo de leitura: aquela de quem sabe, de antemão, que o texto resistirá como um tecido retesado ao nosso entendimento e nos obrigará a estar nele, a permanecer diante dele, vendo-o, como se suas palavras fossem herméticos anagramas, hieróglifos.

Martínez compôs seu livro como uma "summa" de colagens, filtradas pelo corpo ágil e poroso do xerox. Sua estranheza, o milagre de sua existência advém de ser o livro o ápice inesperado de uma obra de que, durante a vida de seu autor, e por ele mesmo, só se publicaram dois títulos -"La Nueva Novela" [o novo romance] e "La Poesía Chilena" [a poesia chilena].

O início de "El Poeta Anónimo" talvez se situe nos anos 1980, e creio ser acertado dizer que funciona como um testamento. Ou melhor: como um túmulo. O túmulo de Martínez. Seu título é um rébus: não significa o que profere. Não é o que diz. Como não era "La Nueva Novela" de forma alguma um romance -era o último texto da grande genealogia mallarmiana na América, seu último lance de dados- nem "La Poesía Chilena" um livro de poesia -e sim um objeto, uma caixa contendo, além de terra do Chile e de sua bandeira, um livrinho que a todos espera com páginas em branco e cópias dos atestados de óbito dos maiores poetas chilenos: Gabriela Mistral, Vicente Huidobro, Pablo de Rokha, Pablo Neruda.

Quem seria, então, o anônimo de "El Poeta Anónimo"? Martínez? Os túmulos de todos os poetas que no livro aparecem? As listas dos personagens sem nome retratados por pintores elisabetanos? Os muitos, improváveis rostos de William Shakespeare, que não teve rosto nenhum? Os mortos, os assassinados, Lorca e Marat, os esqueletos, os cinco revolucionários mortos sob um desenho de Púchkin, os cinco soldados mortos pelo regimento 29 em uma noite de 1770, os próceres e os mártires anônimos do Chile? A bela, andrógina melena de Sophie Scholl caindo sobre uma paráfrase mallarmiana do lance de dados "mesmo quando lançado em circunstâncias eternas/ do fundo de um naufrágio"?

A leitura desse livro é -tudo somado e prazerosamente- isso mesmo: um naufrágio cujo fundo não é outro mais que a morte, e que se conclui com uma página em branco, sobre a qual flutua o desenho infantil da liteira construída por Rimbaud para seu transporte, quando já era um poeta mudo e estava a ponto de entrar no "castelo da pureza", no silêncio sem fim da eternidade.

O livro se abre com uma menção ao "Túmulo de Baudelaire", evocação fragmentada em imagens da obra de resistência publicada clandestinamente por Pierre Jean Jouve no ano de nascimento de Martínez e cujo título reproduzia o de uma célebre coleção de textos editados na morte de Baudelaire por Mallarmé -a qual continha, além de homenagens literárias de seus contemporâneos, o improvável túmulo do autor de "As Flores do Mal", a ser erigido por Rodin, e um selvagem frontispício de Félicien Rops. Aí estão lançados, de saída, todos os dados do jogo que alentava Juan Luis Martínez.

Esse túmulo, na abertura de um livro marcado pela hermética presença dos "durmientes", faz pensar que sua matéria não é outra além do adormecimento definitivo que chamamos morte e do silêncio apoético que a cobre e a que chamamos túmulo. A epígrafe, também mallarmiana, de "El Poeta Anónimo", assim o confirmaria: "¡Tumbas-cenizas (ni sentimiento ni espítiru), neutralidad!" [túmulos-cinzas (nem sentimento nem espírito), neutralidade!].

Desde suas primeiras páginas, o livro de Martínez desenha os meandros da morte, que se vai anunciando sigilosa, em mil e uma cifras herméticas: são os sonetos descompostos como mármores enfermiços, é "a melancolia das mais belas estátuas, o pressentimento de que o 'logos' que as anima vai se romper em fragmentos"; são os corpos eternos com ferimentos mortais; é o M de Kepler, que também é o M de Martínez a flutuar em um céu de estrelas, como a estrela solitária do Chile, e revelando a verdade dos corpos submetidos à força central de sua própria decadência, de sua morte.

SILÊNCIO

Então, exatamente na metade de "El Poeta Anónimo", no seu exato centro, no preciso meridiano do volume, sob a égide decifradora de um subtítulo que prega a ausência do autor, aparece o próprio Martínez, pela primeira vez aqui nomeado, na fotocópia de uma ficha de biblioteca referente a uma obra sua, "Le Silence et sa Brisure", coletânea de poemas publicada em Paris, em 1976: o silêncio e sua ruptura, o silêncio que se quebra sempre em forma de poema.

A partir daí, o que o livro contém é o corpo diferido, também ele roto em fragmentos de outro, em fragmentos outros, o corpo ausente do próprio Martínez: sua foto da primeira comunhão sobre a legenda que diz "Rimbaud no dia de sua primeira comunhão", porque "je est un autre" [eu é um outro]; um texto estratégico sobre o duplo como prefiguração poética da sabedoria infinita e do encontro consigo mesmo; no coração central do livro a palavra-chave: "eu", multiplicando-se na frase: "eu, que me perdi".

Do mesmo modo como "O Túmulo de Baudelaire" não era mais que o túmulo construído para sua morte por Mallarmé e constituído, na falta de um corpo, por textos e poemas, "El Poeta Anónimo", obra póstuma do grande poeta chileno, que com aquele túmulo se abre, pista iniciática de sua própria estratégia funeral, é literalmente seu monumento funerário, seu próprio enterro. Com ele, Juan Luis Martínez seguia uma antiga tradição de livros-túmulo que tem início, talvez, com o primeiro volume dos "Ensaios" de Montaigne.

Ali também, precisamente no meio, no obscuro centro da obra de Montaigne, encontramos os poemas de Étienne de la Boétie como uma voz alheia e como um corpo ausente, constituindo, no livro cuja matéria é o próprio Montaigne, no livro-corpo de Montaigne, o túmulo de seu amigo La Boétie.

O que assim se revela é um mistério. Suspeito que Martínez tenha deixado "El Poeta Anónimo" para outro fim que não as chamas: agora está aqui, à espera de uma hermenêutica exigente, que saiba decifrar suas inúmeras chaves e os andrajos do eu que (não) contém. Não tenho a capacidade nem a autoridade ou o saber para tentar. Outros virão. Outros, com maior certeza, hão de perambular por suas páginas belas, escuras, fascinantes.

A mim cabe a satisfação de ter feito parte, com Charles Cosac e Pedro Montes Lira e sob a aprovação de Elianita Martínez, da empreitada que o trouxe de outra morte, revelando-o ao público, elo último e perdido de uma obra fundamental da literatura moderna.

Agora jaz aqui, entre nós, esperemos que eternamente, este livro único e hermético, salvo pelo "amor constante para além da morte" do naufrágio de certas cinzas que nunca chegaram a arder.


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