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Major Passos

Um personagem de livro na campanha da FEB

BORIS SCHNAIDERMAN

RESUMO Ex-combatente recorda a batalha de Monte Castelo, na Itália (1944-5), momento-chave da participação da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial (1939-45). Entre pracinhas e oficiais, desponta a figura do major Passos, que, alheio aos dramas e às emoções do front, marcou a memória do jovem soldado.

Vamos chamá-lo assim, pois não me lembro de seu nome. Tinha estatura média e era pouco loquaz. Subcomandante do grupo de artilharia em que eu servia como calculador de tiro, parecia estar ali para um caso de impedimento do comandante.

Não me lembro de o ter visto executando qualquer tarefa. Ele sempre passava por nós a caminho do quarto do comandante do grupo, o tenente-coronel Da Camino.

Contava-se que tinha em sua folha de serviço ações que não combinavam com o seu vulto tão comum e o rosto sem vibração. Teria participado da Coluna Prestes e, quando esta, na década de 1920, depois de percorrer milhares de quilômetros pelo interior do Brasil, foi acossada pelas forças do governo, cruzou a fronteira e asilou-se na Bolívia, ele se recusou a acompanhá-la e se escondeu num jazigo de família, no cemitério de um povoado, de onde conseguiu esgueirar-se para o Rio de Janeiro. Teria vivido na clandestinidade até a Revolução de 1930 e seria reintegrado no Exército com todas as honras.

No entanto, o que lembro dele não tem nada a ver com esse passado glorioso. Estávamos em pleno inverno, fazia muito frio, mas ainda não havia nevado. O lugarejo em que nos instalamos, Silla, ficava diante de uma ponte constantemente bombardeada, pois passavam por ela os suprimentos para o front da infantaria, pouco adiante. E, para dificultar a regulagem de tiro pelo inimigo, os norte-americanos instalaram máquinas fumígenas nas cabeceiras da ponte, de modo que vivíamos dentro de uma nuvem de fumaça.

RANCHO Quando estávamos fora de casa, na hora do rancho, começava o bombardeio, cada um se jogava no chão e então se ouvia o ploque-ploque dos estilhaços de granada. Depois, o praça se erguia, apalpava o corpo, feliz por não estar ferido, e voltava para seu lugar na fila, a fim de encher a marmita. Aliás, muitas vezes, eu não ia para a fila e alguém se encarregava de me levar a boia.

Sinto até hoje na boca o gosto de certos pratos particularmente detestáveis, como o da carne com feijão ("Lima beans"), a ração C do Quinto Exército norte-americano, ao qual estávamos incorporados.

Recordo o major Passos num dia fatídico para a FEB, o do ataque ao Monte Castelo em 12 de dezembro de 1944. Tinha havido antes um ataque conjunto americano-brasileiro repelido pelos alemães. Dessa vez, porém, era tudo por nossa conta.

De véspera, ficamos calculando tiro sobre uma série de posições alemãs e fomos avisados de que iríamos acordar de madrugada, para acompanhar com outros tiros a progressão da infantaria.

Dito e feito. Passamos a manhã em atividade, calculando tiros de acordo com os pedidos do observador avançado, oficial de nosso grupo que ficava num ponto da linha de frente, de binóculo milimetrado, observando o ataque e regulando os tiros pelo telefone.

Ficamos calculando o dia todo numa torcida louca para que a ação desse certo. As coisas pareciam ir bem, o Castelo ia ser nosso, mas já de noitinha os alemães lançaram o contra-ataque, e os infantes brasileiros foram desbaratados com grandes perdas.

Eu me lembro de nossa tristeza, dos rostos de meus companheiros na luz escassa que era possível naquelas circunstâncias e da raiva que eles concentravam na pessoa do comandante da infantaria e que encabeçava o ataque, o general Zenóbio da Costa.

Pois bem, naquele clima de desalento, ouviu-se de repente a voz do major Passos: "Também, que ideia absurda, querer tomar o morro com os nossos negroides!".

Não me lembro dele nos dias subsequentes, mas certamente estava lá, abrindo caminho entre as nossas pranchetas, na direção do quarto do comandante.

MAPA O que se gravou com muita força em minha memória foi o mapa daquele pedaço da Itália, com curvas de nível muito próximas entre si e com círculos desenhados em cima, cada um com um nome de mulher, de modo que os tiros eram calculados sobre nomes poéticos: Wilma 12, Eva 5, Deise 8 etc.

Não estávamos mais em Silla, pois o comando finalmente percebera (depois de quase um mês e meio!) a inutilidade de ficarmos expostos a tantos perigos. Instalamo-nos, portanto, em Bellavista, na montanha, pertinho de Porretta Terme, que se via embaixo.

As casinhas do povoado eram todas térreas, e ali se fixara uma população heterogênea, todos em trânsito e completamente desarvorados (já escrevi sobre isso em "Guerra em Surdina").

Lá, num ponto mais elevado, víamos o conjunto Monte Castelo -Monte della Torraccia- Monte Belvedere, este de cumeeira lisa, despida de vegetação. Mas, apesar de estarmos num lugar relativamente seguro, de noite ouvíamos o zunir das granadas, que iam rebentar em Porretta Terme.

Finalmente, soubemos pelo rádio (geralmente ligado aos nossos telefones) que a 10ª Divisão de Montanha norte-americana ia ser lançada contra o Monte Belvedere. Ficamos ouvindo notícias sobre a progressão dos norte-americanos e, finalmente, soubemos da conquista daquela posição: uma cumeeira lisa e redonda que dominava o vale.

Era evidente que isto seria seguido por um ataque brasileiro ao Castelo. E foi o que aconteceu.

Houve horas mortas na Central de Tiro, noite a dentro. Eu ficava calculando sem parar, e o capitão circulando entre as duas pranchetas, a do controlador vertical, que era eu, a do controlador horizontal e as cadeiras dos três calculadores das baterias de tiro.

Pobre capitão Melo! Encolhido em seu capotão, a cabeça ainda mais encolhida sob o capacete de cortiça e o rosto quase escondido atrás de uma echarpe de lã, ficava circulando entre os comandados, esfregando as mãos e desviando-as para os lados, numa posição de quem vai alçar voo, o que lhe valeu a alcunha: "Borboleta". "Cuidado! Cuidado! Senão vai tiro contra a nossa infantaria, né!" Este "né" era a marca pessoal de todo seu discurso.

Calculando sem parar, deixei definitivamente de ir à fila do rancho e alguém me trazia a marmita com o almoço ou o jantar. Apenas uma vez, o próprio capitão me substituiu e fui almoçar sobre umas medas de feno, de costas para Porretta Terme.

Viam-se dali as montanhas de que fazia parte o Monte Castelo, no qual se fixavam nossos olhos. Ali, ao longe, nossos aviões desciam em voo rasante, ouvindo-se então um matraquear de metralhadora, nossas e dos alemães.

Voltando à Central de Tiro, retomei os cálculos, mas, após mais de 48 horas de trabalho, disse a Borboleta: "Capitão, eu não aguento mais. Trate de me substituir". Desci os degraus da entrada cambaleando e, indo para a estrada, joguei-me à sombra do casebre e dormi um par de horas. Depois, voltei a subir e continuei dobrado sobre a prancheta, olhando no mapa as curvas de nível e rabiscando cálculos.

Em dado momento, o rádio transmitiu: "O Castelo é nosso!". Pulei então de junto da prancheta e ficamos nos abraçando, os praças entre si, ante o olhar estático de Borboleta.

Mas, em meio a nossa explosão de júbilo, ressoou a voz monocórdia do major Passos: "Ora, com tanto tiro nem é vantagem!".

Aquilo parecia vir de um outro mundo, não era o mundo em que se lutava contra o nazismo, a barbárie.

Passado algum tempo, iniciou-se a investida para o vale do Pó, então em efervescência devido aos combates entre alemães e "partigiani". Na frente ia o carro-comando do tenente-coronel, com o major ao lado, sempre pálido e sisudo. Depois, os jipes dos oficiais, seguidos pelos "tratores" das baterias, cada qual com o seu canhão atrelado.

Enfrentamos ainda resistência em Zocca e Zocchetta. Quando atravessamos Zocca, sentimos o cheiro nauseante de cadáveres em decomposição. Certamente, não foi por causa de nossas granadas, pois não dava tempo: deve ter havido ali um massacre de fascistas pelos "partigiani".

Passávamos por povoados com lençóis alvos pendurados nas janelas. Depois, encontramos populares aglomerados em alguns pontos, atirando flores e gritando: "Liberatori d'Italia! Liberatori d'Italia! Viva i liberatori d'Italia!". Na frente, o carro-comando, com o tenente-coronel e major ao lado, sempre pálido e sisudo. Em meio à emoção, nem percebíamos o que havia de absurdo nessa apoteose.

Depois, nos cruzamentos, vimos rapazes e moças, de fuzil a tiracolo, que nos saudavam de punho cerrado. Parecia até que estávamos na Espanha republicana

Um dia, quando nos instalamos num mosteiro abandonado, soubemos que o comando do grupo ia passar para oficiais recém-chegados do Brasil. Não houve qualquer cerimônia de despedida, sequer um aperto de mão, e lá se foi o nosso major, tão alheio a cada um de nós como desde o início, e nunca mais soube algo a seu respeito.


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