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Mercado

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Marcelo Miterhof

O primário e a Constituição

Que os investimentos não sejam comprimidos para satisfazer a fome de ajuste do 'mercado'

O governo federal anunciou uma meta de superavit fiscal primário para este ano de 1,9% do PIB. Isso ocorreu mesmo com as reduções das expectativas de crescimento real e do primário de Estados e municípios. Para tanto, foram anunciados cortes de R$ 44 bilhões nas expectativas de despesas, dos quais R$ 30 bilhões em itens discricionários.

A reação do dito "mercado" foi positiva. Sua lógica é pressionar por juros (ganhos de baixo risco) mais altos e por mais poupança pública para pagá-los (o primário).

Não deixaram de ser feitas cobranças sobre itens que estariam subestimados, como o subsídio às térmicas, e alertas de que os ajustes serão acompanhados "mês a mês". Porém, há confiança de que, ante a ameaça de rebaixamento da classificação de risco do país, será entregue um superavit primário substancial.

No Brasil os anúncios de ajuste fiscal têm algo de teatral. A receita convencional prega o corte de despesas, especialmente as correntes, para que o Estado abra espaço para o mercado "fazer sua mágica".

No entanto, na prática, a rigidez dos gastos públicos faz com que o ajuste somente seja possível pelo aumento de receitas (extraordinárias ou via elevação de alíquotas tributárias) ou pelo corte dos investimentos. É claro que, na dividida entre ideologia e interesse, o "mercado" se satisfaz com o segundo.

Dois motivos explicam tal rigidez. A Constituição vincula boa parte das receitas da União a transferências para Estados e municípios e a gastos com educação e seguridade (saúde, previdência e assistência social). Ademais, é estreita a margem para conter despesas contratuais, como benefícios previdenciários concedidos e salários dos servidores, e para comprimir os gastos (obrigatórios) com educação e saúde, sob risco de desorganizar sistemas que têm penosamente se estruturado.

Até 1994, o ajuste pelas despesas era facilitado porque a simples postergação dos pagamentos públicos trazia grandes ganhos pela corrosão inflacionária.

Após a estabilização, a saída foi usar a previsão constitucional das contribuições sociais. Criadas para dar lastro ao novo conjunto de direitos universais, elas têm requisitos legais menos duros, como dispensar o princípio da anuidade, e, principalmente, não precisam ser divididas com Estados e municípios.

Assim, a partir da segunda metade dos anos 1990, as contribuições sociais viraram um instrumento de elevação da carga tributária, em especial das receitas federais.

Mas, como as contribuições se destinam ao gasto social, foi preciso editar emendas constitucionais (Desvinculação de Receitas da União, DRU) que desde 1994 têm liberado provisória e sucessivamente a aplicação de 20% das receitas federais.

Assim, foi possível usar o aumento de arrecadação para atingir expressivos superavit primários. Como destaca minha colega Erika Araújo, com quem discuti esta coluna, a partir de 1999 as contribuições sociais cresceram à frente de suas despesas vinculadas, gerando excedentes anuais de até dois pontos percentuais do PIB.

Após 2005, o crescimento e, assim, a melhora da situação fiscal --que, para o padrão mundial, continua confortável, considerando a relação com o PIB do deficit nominal (3,3%), da dívida pública bruta (57%) ou da dívida líquida (34%)-- permitiram reduzir o desvio de uso das contribuições do financiamento aos gastos sociais.

Como mostrou Samuel Pessôa, em sua coluna do dia 16, de 1999 a 2013, o gasto federal subiu 4,5 pontos percentuais do PIB. A alta foi em gastos diretos, pois as despesas com pessoal, incluindo aposentados, e o custeio administrativo caíram 0,7 ponto percentual.

Por certo, há critérios de benefícios que podem ser revistos, o que daria algum ganho fiscal, casos do seguro-desemprego e das pensões por morte, além de subsídios, como a desoneração da folha salarial de serviços e bens não transacionáveis. Mas, como regra, os gastos sociais são justos e efetivos.

Esse é o pacto criado pela Constituição. Mais que uma petição de princípios, ela buscou prover instrumentos para construir um país mais equilibrado, conforme preocupações e dificuldades da época. Tais instrumentos podem ser rediscutidos. Mas hoje nenhum governo teria grande margem para cortar despesa.

Tomara que, supondo a carga tributária estável, não se comprimam os investimentos para satisfazer a fome de ajuste do "mercado".

marcelo.miterhof@gmail.com


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