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Riqueza tende a se concentrar, diz livro

Leia abaixo continuação da resenha sobre "Capital no Século 21", do pesquisador francês Thomas Piketty

Os lucros das empresas dispararam desde o começo da crise, enquanto os salários se estagnavam

Piketty lança um desafio intelectual imediato com o título do seu livro: "Capital no Século 21". Economistas ainda podem falar assim? Não é apenas a alusão evidente a Marx que torna o título tão surpreendente. Ao invocar o capital desde o começo, Piketty abandona as discussões mais modernas sobre a desigualdade e retorna tradição mais antiga.

A suposição geral da maior parte dos pesquisadores sobre a desigualdade era que a renda auferida, em geral na forma de salário, é o mais importante, e que a renda gerada pelo capital não é nem importante nem interessante.

Piketty demonstra, porém, que mesmo hoje é a receita do capital, e não a renda do trabalho, que predomina no topo da distribuição de renda. Ele também demonstra que, no passado --durante a Belle Époque europeia e, em menor escala, a "Gilded Age" norte-americana-- a propriedade desigual de ativos, e não o salário desigual, foi o principal propulsor da disparidade de renda. E argumenta que estamos no caminho de volta àquele tipo de sociedade.

Não se trata de especulação casual de sua parte. "Capital in the Twenty-First Century", afinal, é um trabalho que respeita os princípios do empirismo, e é propelido por um arcabouço teórico que busca unificar a discussão do crescimento econômico e da distribuição tanto de renda quanto de riqueza. Piketty basicamente vê a história econômica como a de uma corrida entre a acumulação de capital e outros fatores que propelem o crescimento, como o crescimento populacional e o progresso tecnológico.

É certo que essa é uma corrida que não pode ter vencedor permanente. Em prazo muito longo, o estoque de capital e a renda total precisam crescer mais ou menos no mesmo ritmo. Mas um lado ou outro pode permanecer décadas em vantagem.

Na véspera da Primeira Guerra Mundial, a Europa havia acumulado capital seis ou sete vezes maior que a renda nacional de cada país. Ao longo das quatro décadas seguintes, porém, uma combinação de destruição física e de desvio de poupança para esforços de guerra reduziu essa proporção à metade.

A acumulação de capital foi retomada depois da Segunda Guerra Mundial, mas o período registrou crescimento econômico espetacular --os "Trente Glorieuses", ou "30 anos gloriosos". Por isso, a razão entre capital e renda permaneceu baixa.

Desde os anos 70, porém, a desaceleração do crescimento implicou em alta na razão entre capital e renda, de modo que o capital e a riqueza vêm caminhando de volta aos níveis que detinham na Belle Époque.

Essa acumulação de capital, diz Piketty, terminará por recriar desigualdade ao estilo da Belle Époque, a menos que seja combatida por tributação progressiva.

Por quê? É tudo uma questão de taxa de retorno sobre o capital (r) versus o ritmo de crescimento econômico (g).

Quase todos os modelos econômicos nos dizem que, caso g caia --o que vem acontecendo desde os anos 70 e deve continuar--, r cairá. Mas Piketty assevera que r cairá menos que g. Se for suficientemente fácil substituir trabalhadores por máquinas --se, para usarmos o jargão técnico, a elasticidade de substituição entre capital e trabalho for superior a um--, o crescimento lento, e a alta consequente na razão entre capital e renda, ampliarão a disparidade entre r e g.

E Piketty argumenta que é isso que os registros históricos provam que acontecerá.

Uma consequência imediata será uma redistribuição da renda, dos trabalhadores para os detentores de capital.

A sabedoria dominante foi sempre a de que não precisávamos nos preocupar, que as parcelas respectivas do capital e do trabalho na renda total se provam fortemente estáveis ao longo do tempo. Em prazo muito longo, porém, isso pode não ser verdade.

No Reino Unido, por exemplo, a parcela do capital na renda --quer em forma de lucros empresariais, dividendos, renda fixa ou vendas de propriedades, por exemplo-- caiu de cerca de cerca de 40% antes da Primeira Guerra para pouco mais de 20% em 1971, e de lá para cá recuperou cerca de metade do terreno. Nos EUA, esse arco histórico é menos claro, mas a redistribuição em favor do capital está em curso.

É especialmente importante apontar que os lucros das empresas dispararam desde o começo da crise financeira, enquanto os salários --incluindo os das pessoas com nível mais elevado de educação-- se estagnavam.

Uma parcela maior para o capital, por sua vez, eleva diretamente a desigualdade, porque a propriedade do capital é sempre distribuída de modo mais desigual do que a renda do trabalho.

Mas os efeitos ultrapassam isso, porque, quando o ritmo de retorno sobre o capital excede fortemente o ritmo de crescimento, "o passado tende a devorar o futuro": a sociedade tende a ser dominada pela riqueza hereditária.

Considere a Europa da Belle Époque. Os proprietários de capital podiam esperar retornos de 4% a 5% sobre seus investimentos, com tributação mínima; enquanto isso o crescimento econômico era de apenas cerca de 1% ao ano.

Assim, os ricos podiam reinvestir parte suficiente de sua renda para garantir que sua riqueza, e sua renda, crescesse mais rápido que a economia, o que reforçava seu domínio, e ao mesmo tempo gastar o suficiente para levar vidas de grande luxo.

E o que acontecia quanto esses indivíduos ricos morriam? Sua riqueza era legada aos herdeiros, com tributação mínima. Dinheiro herdado respondia por entre 20% e 25% da renda anual; a maior proporção das riquezas (cerca de 90%) era herdada e não auferida com o trabalho.

E se concentrava nas mãos de minorias muito pequenas.

Em 1910, o 1% mais rico da população controlava 60% da riqueza da França; na Grã-Bretanha, eram 70%.

Não admira, assim, que os romancistas do século 19 fossem obcecados por heranças. Piketty discute extensamente os conselhos do canalha Vautrin a Rastignac em "Pai Goriot", de Balzac, resumidos na afirmação de que nem a mais bem-sucedida carreira poderia resultar em mais que uma fração da fortuna que Rastignac seria capaz de adquirir ao se casar com a filha de um homem rico.

Vautrin estava certo: ser parte do 1% mais rico dos herdeiros do século 19 conferia um padrão de vida 2,5 vezes superior ao que se poderia atingir por meio de esforço que a levasse ao 1% mais bem pago dos trabalhadores.

Seria tentador dizer que a sociedade moderna em nada se parece com isso. Mas tanto a renda do capital quanto a riqueza hereditária, ainda que menos importantes do que na Belle Époque, continuam a ser poderosos propulsores da desigualdade --e sua importância está crescendo.

Na França, mostra Piketty, a parcela hereditária da riqueza total caiu muito nas guerras e no pós-guerra; por volta de 1970, era de menos de 50%. Mas retornou aos 70% e continua a crescer.

Da mesma forma, houve primeiro queda e depois nova alta na importância das heranças no que tange a fazer de alguém parte da elite.

O padrão de vida do 1% de herdeiros mais ricos caiu abaixo do 1% de trabalhadores mais bem pagos, entre 1910 e 1950, mas voltou a crescer depois de 1970. Ainda não estamos plenamente de volta ao padrão de Rastignac, mas uma vez mais se tornou mais valioso ter os pais certos (ou escolher os sogros certos) do que o emprego certo.

E pode ser apenas o começo. As estimativas de Piketty sobre o r e g mundiais em longo prazo sugerem que a era da equalização ficou para trás e que as condições são propícias ao restabelecimento do capitalismo patrimonial.

Dado esse quadro, por que a riqueza hereditária desempenha papel tão pequeno no discurso político moderno? Piketty sugere que as dimensões das fortunas hereditárias, por serem tão vastas, as tornam invisíveis: "A riqueza é tão concentrada que um grande segmento da sociedade literalmente não tem consciência de sua existência, de forma que algumas pessoas imaginam que pertença a entidades surreais". É um argumento muito bom. Mas certamente não constitui a explicação completa. Pois o fato é que o exemplo mais conspícuo de uma disparada na desigualdade no mundo moderno --a ascensão do 1% de muito ricos no mundo anglo-saxão, especialmente nos EUA, não tem muito a ver com acúmulo de capital, pelo menos por enquanto. Tem mais a ver com remuneração e renda salarial excepcionalmente altas.

"Capital no Século 21", como espero ter deixado claro, é um trabalho excelente. Em um momento no qual a concentração de renda e riqueza nas mãos de uns poucos ressurgiu como questão política central, Piketty não oferece apenas documentação inestimável sobre o que está acontecendo, e com profundidade histórica incomparável. Também oferece o que podemos descrever como uma teoria do campo unificado para a desigualdade, integrando crescimento econômico, a distribuição de renda entre o capital e o trabalho e a distribuição de renda e riqueza entre os indivíduos em um só arcabouço.

E, no entanto, há uma coisa que subtrai algum mérito a essa realização --uma espécie de prestidigitação intelectual, se bem que ela não envolva nenhuma trapaça ou falsidade da parte de Piketty.

Mesmo assim, eis: O principal motivo para que houvesse necessidade de um livro como esse é a ascensão não só do 1% mas do 1% dos EUA, especificamente. Mas essa ascensão, como se verifica, aconteceu por razões que não integram o escopo da grande tese de Piketty.

Ele é um economista bom e honesto demais para tentar enrolar com relação a fatos inconvenientes. "A desigualdade nos EUA em 2010", afirma, "é quantitativamente tão extrema quanto na velha Europa da primeira década do século 20, mas a estrutura dessa desigualdade é --muito claramente-- distinta". De fato, o que vimos nos EUA e estamos começando a ver em outros lugares é algo de "radicalmente novo": a ascensão dos "supersalários".

O capital ainda importa. Nos escalões mais elevados da sociedade, a renda do capital ainda excede a renda dos salários e bonificações. Piketty estima que a desigualdade aumentada da renda do capital responda por cerca de um terço do aumento da desigualdade nos EUA.

Mas a renda salarial no topo também disparou. Os salários reais dos EUA cresceram pouco, se alguma coisa, do começo dos anos 70 para cá, mas os salários do 1% mais bem pago subiram em 165%, e os do 0,1% mais bem pago, 362%. Se Rastignac estivesse vivo hoje, Vautrin talvez reconhecesse que ele poderia se sair tão bem arrumando emprego à frente de um fundo de hedge quanto com um casamento rico.

O que explica essa ascensão dramática na desigualdade de renda, com a parte do leão dos ganhos reservada às pessoas no topo da escala? Alguns economistas dos EUA sugerem que a tendência seja propelida por mudanças na tecnologia. Piketty não aceita essa teoria. Ele aponta que economistas conservadores adoram falar sobre os altos salários de astros, de cinema ou do esporte, para sugerir que as altas rendas são merecidas. Mas essa é uma fração muito pequena da elite. O que há é principalmente executivos --cujo desempenho é, de fato, muito difícil de avaliar ou de definir em termos de valor monetário.


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