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Habla que eu te escuto

Em Buenos Aires, classe média se reúne em sessões de terapia coletiva para discutir problemas de saúde e motivados pela crise econômica

LÍGIA MESQUITA DE BUENOS AIRES

Ao redor de uma grande mesa na cafeteria Lo Di Carlo, no bairro Belgrano, em Buenos Aires, enquanto as 12 pessoas presentes mordiscam suas "medialunas" (o croissant local) e tomam café com leite numa recente tarde de quarta-feira, Ileana Solari pede a palavra.

"Ando muito triste e queria compartilhar com vocês o que está acontecendo", diz a aposentada de 73 anos, antes de contar que o namorado, que vive no interior, piorou nos últimos meses.

Ele tem mal de Parkinson. "Estou vivendo o luto de tudo aquilo que sonhei e que não vai se realizar. Todos os meus projetos foram à merda", desabafa, sem medir as palavras.

Quando ela faz uma pausa, as mãos à sua volta começam a se levantar e outros relatos vão surgindo.

"Homem não lida bem com doença", diz Beatriz Landreani, 64, também aposentada. "Eu tive minha mãe doente em casa, que morreu há dois anos, e também perdi meu namorado na sequência. Eu acho que você não deveria deixá-lo sozinho. Eu sofri cuidando deles, mas não me arrependo."

A conversa acontece na oficina chamada "Passando pelas crises", uma das mais de 200 oferecidas semanalmente pelo Programa de Saúde Mental do Bairro do Hospital Pirovano.

O programa gratuito, criado em 1985 no bairro de classe média, conta hoje com a participação de cerca de 3.000 pessoas por semana em oficinas que vão de temas como "Quem sou e quem quero ser" a "Meus filhos vivem longe".

"Não é terapia, não é um programa assistencial. É um programa de saúde mental, de troca de experiências. E a solidariedade é que gera essa saúde pra cabeça", diz o psicólogo Miguel Espeche, coordenador do projeto desde 1997.

Segundo Espeche, as oficinas substituem a relação de vizinhança que desapareceu. "As cidades grandes inibem as possibilidades de conversar", afirma.

A Folha assistiu a quatro sessões do projeto. Em todas, a reportagem foi autorizada a reproduzir os depoimentos e nomes desde que também participasse dos debates.

Os encontros são organizados pelos próprios vizinhos e podem acontecer em cafés, parques ou no próprio hospital público.

Os novatos são avisados da principal regra: "O que falamos nas oficinas, fica aqui", avisa Marta Otero, 68, coordenadora do grupo "Passando pelas crises".

"Aqui não há julgamento nem juízes, somente experiências humanas", diz.

"Isso aqui amplia a visão que você tem da sua vida porque você enxerga as necessidades, os problemas dos outros. E até se reconhece neles", afirma Ileana, antes de se despedir e receber os agradecimentos dos colegas de debate "por ter dividido" sua história.

Em alguns encontros, podem surgir temas como inflação e o receio de uma nova crise econômica no país.

Vários participantes do programa contaram que começaram a frequentar as sessões em momentos de dificuldade financeira: alguns, quando perderam o emprego, e outros, quando suas empresas quebraram.

Em 2002, logo após a última crise econômica do país, o psicólogo Espeche criou uma oficina sobre o tema. "Mas foi algo bem específico. Hoje esses assuntos podem surgir em meio a tantos outros", diz.

Outros, decidiram participar das reuniões porque o casamento estava acabando.

É o caso da médica Miryan Fontenla, 67, participante da oficina "O sentido da minha vida", que desde 2001 frequenta o programa do Pirovano.

"Na terapia você só fala de você. Aqui, não. Você fala e ouve o tempo todo", diz ela, que acabou não se separando. "Aprendi a me conhecer melhor aqui."


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