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Entrevista da 2ª Etgar Keret

Sem concessões, guerra em Gaza se repetirá a cada 2 anos

Escritor israelense, que foi um dos participantes da Flip, diz que privilegiar a destruição do grupo Hamas é um erro

SYLVIA COLOMBO ENVIADA ESPECIAL A PARATY

"Quando eu vejo crianças mortas, sei que isso é errado e sinto com o meu coração. Mas não sou um general, não sei como seria possível lutar uma guerra de uma maneira melhor'. Até agora, todos os cessar-fogo foram rompidos pelo Hamas", disse, em entrevista à Folha, o escritor israelense Etgar Keret, 46.

Participante da 12ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, que terminou neste domingo (3) na cidade fluminense, Keret comentou o atual conflito entre Israel e o Hamas, assunto predominante também na mesa do encontro que dividiu com o autor mexicano Juan Villoro.

"Não tenho problemas em falar do conflito, creio que quanto mais informações pudermos passar ao mundo sobre o que está acontecendo lá, é melhor. As pessoas não sabem o que pensar, ainda mais quando percebem a desproporcionalidade do número de mortos, muito maior do lado palestino do que do lado israelense [cerca de 1.800 contra 66]", afirmou.

Keret integra uma geração de escritores israelenses que, por ter nascido no fim dos anos 1960, quando ocorreu a Guerra dos Seis Dias [em que Israel conquistou as colinas de Golã, o deserto de Sinai e a Cisjordânia], cresceu com uma atitude crítica com relação a como o Estado de Israel foi criado e se construiu.

Seu irmão é um esquerdista anti-Israel que mora na Tailândia, enquanto a irmã vive num bairro ultraortodoxo de Jerusalém. Keret é o mais moderado entre esses dois extremos. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

Folha - Qual a diferença entre este conflito entre Israel e o Hamas e os anteriores?

Etgar Keret - Não penso que haja muitas diferenças em sua natureza. Segue um mesmo padrão. Começa com um sequestro, ou um assassinato, depois há retaliação, depois vêm bombardeios, morrem soldados, morre gente do Hamas, morrem civis.

Desta vez, porém, creio que o Hamas se mostra mais determinado em não aceitar um cessar-fogo. E isso porque foi de alguma forma surpreendido. Não esperavam estar tão sozinhos, sem apoio internacional e de outros grupos. Antes, ainda num estágio muito inicial, o Hamas quis parar mais cedo.

E que consequências este novo cenário trará para a guerra?

Essa sensação de isolamento creio que está gerando um sentimento neles de que não podem perder essa chance, que precisam sair desse conflito tendo ganhado algo. E que não podem perder o seu poder. Isso os coloca numa situação desesperada, e numa posição em que suas atitudes são menos previsíveis. O que pode ser muito perigoso.

Qual sua principal crítica com relação ao governo israelense neste episódio?

Minha frustração é que o governo israelense tem uma ideia de que pode acabar com o Hamas pela força. E sim, pode até ser verdade. Somos mais fortes do que o Hamas.

Mas sinto que isso faz com que seja completamente relutante em tentar um caminho diplomático, com Mahmoud Abbas [presidente da Autoridade Palestina e líder do Fatah, grupo rival do Hamas].

Esse caminho que privilegia a ideia de que somos mais fortes, essa superestimação do nosso poder, está errada.

Creio que a única maneira de acabar com o Hamas é fortalecer uma outra alternativa.

Mas, não, Netanyahu diz que Abbas não pode ser um parceiro. Nosso ministro das Relações Exteriores diz que devemos tirá-lo. Ou seja, a guerra com o Hamas se transforma em nossa única alternativa de lidar com a questão palestina.

Sim, nós somos mais fortes do que o Hamas, mas o preço que temos de pagar é esse que nós estamos vendo. Muitos civis morrendo. Mas o Hamas não se importa com a vida dos civis.

Enfim, acho que o erro foi feito antes, o erro foi cometido quando esse governo foi eleito. É o governo mais de direita da história de Israel e não vai nos oferecer uma outra saída.

Você não acredita numa negociação nesta gestão?

De maneira nenhuma. Qualquer tentativa de negociação é vista como um obstáculo. A questão é que, numa guerra, ninguém ganha, especialmente nesta guerra.

E a grande perdedora dessa guerra foi a população civil. Muitos palestinos não queriam o Hamas no poder. Há mulheres e crianças sofrendo que não estão conectados com o Hamas.

Mas, novamente, se eu fosse um general e você me perguntasse se eu tenho algum outro truque, eu não sei se teria.

Se você chega a um acordo com um outro país de um cessar-fogo e o outro país não aceita, o que fazer?

Qual seria a saída?

Se queremos chegar a um acordo, deveríamos fazer cessões dos dois lados. Israel deveria ceder Jerusalém Oriental, e o Hamas deveria abandonar alguns princípios radicais que são irreais.

Enquanto não atingirmos uma solução, isso vai continuar assim, a cada dois anos essa situação vai se repetir.

Os dois lados se mostram tão corajosos, mas não são tão corajosos a ponto de assumir um compromisso.

Como pai de uma criança [Lev, de oito anos], como vê a morte das crianças palestinas? É uma imagem que choca o mundo todo.

Obviamente. Eu posso entender o choque e a revolta e isso também me toca, me emociona.

Sinto imensa empatia. Mas sei que muita gente não sabe que a desproporcionalidade do número mortos, inclusive de crianças, só existe porque estamos mais protegidos, temos mais recursos.

Ainda assim, quando estou na rua, escuto "bum" e agarro meu filho, cobrindo-o para protegê-lo, sei que só vou ouvir ou ver os estilhaços de metal caindo, porque temos um escudo, podemos nos proteger.

Mesmo assim, mesmo que, na minha cabeça, eu saiba que há mais chances de que eu morra escorregando no banheiro do que atingido por um míssil, quando você sente isso como uma experiência, você sente muito medo.

Não sou um general nem um estrategista militar, sou um escritor, posso falar do meu sentimento, da minha empatia. Mas eu não sei como lutar uma guerra de uma maneira "melhor".

Como você explica o conflito para seu filho?

Ele entende que é errado o que o Hamas faz. Se assusta, e está acostumado, na escola, a ser ensinado a rezar pela paz. O que eu tento lhe dizer é que a paz não virá de graça, que teremos de construí-la. Eu e a geração dele.

Tento explicar que não há como comparar a situação dos cidadãos que vivem em Israel e a dos cidadãos que residem em Gaza, porque nós temos o escudo, temos abrigos e eles não têm nenhuma dessas coisas. E também que é preciso ouvir o argumento palestino.

Mas procuro explicar que Israel tem de lidar com uma situação muito única, que é lidar com um inimigo que não se importa com sua população, algo muito típico de fundamentalistas religiosos.

O Brasil criticou a posição de Israel, e isso se transformou numa crise diplomática. O que achou disso?

Às vezes, a vida nos coloca diante de um oximoro, e o caso com o Brasil é um pouco isso.

Eu entendo completamente que a reação de alguém, ou de um governo, ao ver um número tão alto de civis morrendo, seja protestar e tentar interromper isso. Parece algo muito humano. Posso entender o governo brasileiro.

Quando um país está jogando mísseis em áreas populosamente condensadas, não é irracional pensar assim. Então não penso que o Brasil foi irracional.

Quando o presidente Vladimir Putin e os pró-russos atiram num avião estrangeiro e matam pessoas que não têm a ver com seu conflito, aí está tudo muito claro. Está errado e pronto. Mas a situação de Israel é muito mais complexa e as duas narrativas são compreensíveis.

Uma autoridade israelense chamou o Brasil de "anão diplomático".

Eu não sabia disso até chegar aqui. Mas não tenho dúvidas de que essa é uma expressão estúpida. Não me estranha, infelizmente, porque nos últimos tempos Israel está se tornando mais e mais agressivo.

Além do campo de batalha, também nos argumentos para o exterior e na sua diplomacia. Já tivemos mais cuidado e mais inteligência com relação a isso.


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