Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Mundo

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Fuga do terror

Soldado iraquiano conta como sobreviveu a um massacre do Estado Islâmico ao se fingir de morto

TIM ARANGO DO "NEW YORK TIMES", EM DIWANIYA

Ali Hussein Kadhim, xiita e soldado iraquiano, foi capturado com centenas de outros soldados por militantes sunitas, em junho, e conduzido ao terreno do palácio em que Saddam Hussein um dia viveu, em Tikrit.

Os militantes, combatentes do Estado Islâmico, separaram os prisioneiros por seita. Os sunitas foram autorizados a se arrepender de seu serviço ao governo. Os xiitas foram marcados para morrer, e separados em grupos.

Kadhim ocupava o quarto lugar na sua fileira.

Quando o pelotão de fuzilamento disparou contra o primeiro homem, o sangue sujou o rosto de Kadhim. Ele recorda ter visto um militante gravando a cena em vídeo.

"Vi minha filha em meus pensamentos, e a ouvi dizendo papai, papai'", ele conta.

Kadhim sentiu uma bala passar raspando por sua cabeça, e caiu na vala escavada pouco antes. "Fingi que o tiro me atingiu", ele diz.

Poucos momentos depois, conta Kadhim, um dos executores caminhou entre os corpos e percebeu que um dos homens ainda estava respirando. "Deixe que ele sofra", disse outro militante. "Ele é um xiita infiel. Deixe que sofra. Deixe que sangre".

"Àquela altura", conta Kadhim, "minha vontade de viver era muito intensa".

Ele esperou cerca de quatro horas até que escurecesse e o lugar estivesse silencioso. A cerca de 200 metros, ficava a margem do rio Tigre.

Ele conseguiu chegar ao rio, onde os juncos ofereciam alguma proteção. Lá, encontrou um homem chamado Abbas, motorista que havia sido ferido a bala pelos militantes e jogado no rio.

Kadhim ficou três dias no local com Abbas, que estava tão ferido que mal conseguia se mover. Kadhim comeu insetos e plantas, mas Abbas sentia tanta dor que não conseguia comer.

"Foram três dias de inferno", diz Kadhim. Enquanto ele preparava a fuga, Abbas pediu que voltasse para recolhê-lo, e que se isso não fosse possível, que ao menos contasse sua história.

"Conte a todos o que aconteceu aqui", pediu Abbas.

UM DESTINO CRUEL

De volta à casa de sua família, no sul do Iraque, Kadhim, 23, contou sua história em uma tarde recente, durante uma folga na colheita de tâmaras do pomar de seu tio.

O seu é um dos poucos testemunhos diretos, e um dos mais detalhados, a emergir depois do massacre, em junho, dos soldados iraquianos estacionados em Camp Speicher, uma antiga base do Exército americano em Tikrit, a cidade natal de Saddam.

Acredita-se que os militantes detenham como reféns centenas de soldados da base de Tikrit.

A história do massacre revela tanto sobre o estado lastimável das Forças Armadas iraquianas, treinadas pelos EUA ao custo de bilhões de dólares, quanto sobre a crueldade do Estado Islâmico.

Depois que os militantes capturaram Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, em 10 de junho, levaram adiante sua ofensiva na direção de Tikrit.

Lá, o caos e o medo reinavam no Camp Speicher, onde Kadhim, recruta que havia se alistado no Exército apenas dez dias antes da queda de Mossul, estava estacionado. Os oficiais do Exército fugiram, conta Kadhim.

"Ficamos sozinhos", diz. "Por isso decidimos fugir, porque não havia oficiais".

Ele e seus camaradas tiraram os uniformes, colocaram roupas civis e começaram a caminhada. Foi uma decisão terrível: Camp Speicher ainda não caiu para os militantes. Se Kadhim e seus colegas tivessem ficado onde estavam, quase certamente estariam em segurança.

Depois de caminharem apenas alguns quilômetros, encontraram 50 combatentes do Estado Islâmico.

"Eles nos disseram que não nos preocupássemos, e que nos levariam a Bagdá", conta Kadhim. "Tentaram fazer com que nos sentíssemos seguros. E nos enganaram".

Foram levados ao palácio de Tikrit. A Human Rights Watch, que analisou imagens obtidas por satélites e fotos divulgadas pelo Estado Islâmico, diz ter confirmado que entre 560 e 770 homens, no mínimo, foram mortos lá.

GENTILEZA INESPERADA

De volta à margem do rio, por volta das 23h, Kadhim se despediu de Abbas e entrou na água. Estava fria, e a corrente era forte, mas depois de boiar rio abaixo ele conseguiu chegar à margem oposta.

No escuro, ouvindo disparos de armas ao longe, caminhou cerca de 800 metros, até que encontrou uma cabana vazia de troncos, e caiu em sono profundo. Na manhã seguinte, se aproximou de um grupo distante de casas, e uma família sunita o acolheu e ofereceu a ele sua primeira refeição decente em dias: ovos e iogurte.

A família, preocupada com o que poderia acontecer caso fosse apanhada pelo Estado Islâmico dando refúgio a um xiita, o levou de carro à casa de amigos em outra aldeia, onde ele passou mais três dias em segurança.

A próxima parada em sua jornada foi a cidade de Al Alam, lar de um líder tribal sunita que estava operando um sistema clandestino para ajudar soldados xiitas.

Kadhim ficou quase duas semanas lá antes que fosse considerado seguro viajar à região autônoma curda, jornada que o levou a passar por diversos postos de controle do Estado Islâmico. Na capital do Curdistão, Irbil, ele se reuniu com seu tio, que havia viajado de avião, de Najaf, e retornou à sua casa em Diwaniya na noite seguinte.

"Eu senti mais que felicidade", ele diz, sobre rever sua família. "Eles estavam chorando e eu estava rindo".


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página