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Opinião

Legado de Chávez se divide entre bom e repulsivo

Prioridade ao combate à pobreza conviveu com deficit democrático, economia em frangalhos, violência e corrupção

MOISÉS NAÍM COLUNISTA DA FOLHA

Mesmo antes de morrer, Hugo Chávez já tinha se unido a Fidel Castro e Ernesto Che Guevara no panteão de líderes latino-americanos que gozam de reconhecimento global instantâneo.

E, como Castro e Guevara, Chávez é mais que controverso. Ele é objeto de admiração profunda que facilmente se transforma em adoração apaixonada e também de antagonismo que com frequência se converte em ódio igualmente intenso.

Inevitavelmente, será difícil uma avaliação objetiva de seu legado, assim como acontece com os legados de outros líderes profundamente polarizadores, de Mao a Perón.

Contudo, mesmo que os atos de Chávez deem assunto para discussões intermináveis, alguns aspectos do que ele deixou são indiscutíveis.

O BOM

Seu legado mais duradouro e positivo é a ruptura da convivência pacífica da Venezuela com a pobreza, a desigualdade e a exclusão social.

Chávez não foi o primeiro líder político a colocar os pobres no centro da discussão nacional. Tampouco foi o primeiro a aproveitar uma alta na receita petrolífera para ajudar os pobres. Mas nenhum de seus predecessores o fez de modo tão assertivo e com um senso de urgência tão intenso quanto Chávez.

E ninguém teve mais êxito que ele em plantar essa prioridade na psique nacional e até exportá-la para países vizinhos e outros. Ademais, sua capacidade de fazer os pobres sentirem que um deles estava no comando da nação foi algo sem precedentes.

Outro aspecto positivo: ele pôs fim à apatia e indiferença política generalizadas, nutridas ao longo de décadas por um sistema dominado por partidos decadentes e sem contato com a sociedade.

O despertar político da nação desencadeado por Chávez alcançou moradores das favelas, trabalhadores, estudantes universitários, a classe média e, infelizmente, até os militares. E é aqui que começa seu legado negativo.

O MAU

Depois de 14 anos no poder, Chávez não legou à Venezuela uma democracia mais forte ou uma economia mais próspera. O presidente e seus partidários alegaram que 15 eleições nacionais e referendos foram feitos no seu governo e que seus programas sociais promoveram a participação e a democracia "direta" ou "radical".

No entanto, como observou o respeitado acadêmico americano Scott Mainwaring, a democracia requer "eleições livres e justas para o Executivo e o Legislativo, que a população adulta tenha tido direito quase universal ao voto no período contemporâneo, proteção de direitos políticos e liberdades civis e controle civil sobre as Forças Armadas. O regime de Chávez deixa muito a desejar na primeira e terceira dessas características. O campo de jogo eleitoral está extremamente desigual, e o respeito pelos direitos dos opositores foi gravemente erodido. As Forças Armadas estão muito mais envolvidas na política do que antes de Chávez."

Na realidade, Chávez foi pioneiro e um dos mais hábeis praticantes de uma estratégia política que se tornou comum após a Guerra Fria em países que cientistas políticos descrevem como regimes autoritários competitivos.

Neles, líderes chegam ao poder por eleições democráticas e, então, mudam a Constituição e outras leis de modo a enfraquecer os freios e contrapesos impostos ao Executivo, desse modo garantindo a continuidade do regime e sua autonomia quase total, ao mesmo tempo conservando uma superfície de legitimidade democrática.

O outro legado paradoxal -e negativo- de Chávez é a economia em frangalhos. É paradoxal porque seu período na Presidência coincidiu com um boom nos preços de commodities e a presença de um sistema financeiro internacional com dinheiro para gastar e disposto a emprestar a países como a Venezuela.

Além disso, o presidente tinha liberdade para adotar a política econômica que quisesse, sem restrição doméstica ou externa nem limitações institucionais. Mas, no momento de sua morte, poucos outros países apresentavam as distorções econômicas que afligiam a Venezuela.

O país possui um dos maiores deficit fiscais do mundo, uma das taxas de inflação mais altas, o pior posicionamento da taxa de câmbio, a dívida em crescimento mais rápido e uma das mais nítidas quedas de capacidade produtiva, incluindo a do crucial setor petrolífero.

Ademais, sob Chávez o país caiu para os últimos lugares dos rankings que medem a competitividade internacional e a atratividade para investidores estrangeiros, ao mesmo tempo em que subiu para o topo da lista dos mais corruptos do mundo.

Esse ponto é mais um paradoxo de um líder cuja ascensão ao poder foi pautada sobre a promessa de erradicar a corrupção e esmagar a oligarquia. A burguesia bolivariana -ou os boliburgueses, nova oligarquia formada por aliados estreitos dos líderes do regime, familiares e amigos- acumulou riqueza enorme através de transações corruptas com o governo. Também isso faz parte do legado lamentável de Chávez.

O REPULSIVO

O presidente deixa uma sociedade ferrenhamente polarizada. Embora as divisões sociais sempre tenham existido, o tipo de política feito por Chávez dependia demais de alimentar o ressentimento, o ódio e a vingança, elevando-os a níveis inusitados. Será preciso muito tempo e um esforço imenso para curar as feridas deixadas pelas doses maciças de conflito social que o presidente promoveu e das quais ele se alimentou.

Outra faceta repulsiva da Presidência de Chávez é que, sob seu governo, a Venezuela tornou-se um dos países mais assassinos do mundo. Cabul ou Bagdá são mais seguras que Caracas, onde homicídios e sequestros se tornaram parte do dia a dia.

O país também é visto por organismos policiais internacionais como paraíso de falsificadores, lavadores de dinheiro e traficantes de pessoas, armas e drogas. De acordo com a ONU, a Venezuela já é a principal fornecedora de drogas para a Europa. O Tesouro dos EUA identificou oito membros do alto escalão do governo de Chávez, incluindo o ex-diretor de inteligência e o ministro da Defesa, como chefões do tráfico.

Chávez ficou silencioso e passivo em meio a tudo isso, contrariando seu padrão. Sua complacência enquanto via o país mergulhar num vórtice de homicídio e criminalidade será um dos aspectos mais repugnantes e imperdoáveis de seus anos no poder.

OPORTUNIDADE PERDIDA

A população venezuelana deu a Chávez um cheque político em branco; graças ao boom prolongado do petróleo, ele obteve um cheque financeiro em branco. Poucos outros chefes de Estado tiveram a combinação de imenso apoio popular e imensos recursos financeiros de que Chávez desfrutou por 14 anos.

Seu controle total das alavancas do poder garantia que ele podia fazer o que quisesse. E ele fez: de mudar o nome do país e sua bandeira até impor um fuso horário singular. E muito mais. O que não fez foi deixar o país melhor que estava quando ele se tornou presidente. Hugo Chávez merece ser lembrado como uma oportunidade perdida.

Tradução de CLARA ALLAIN


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